O que é um rim ectópico?
Ectopia (do grego ektopos, fora do lugar) é um termo médico utilizado para descrever a deslocação ou a posição anômala de um órgão ou tecido.
Sendo assim, a ectopia renal ou rim ectópico é uma anomalia que acontece quando um ou os dois rins apresentam-se fora da sua localização habitual no corpo, que é a região retroperitoneal (região atrás dos órgãos abdominais e abaixo da caixa torácica).
A ectopia renal é uma alteração congênita, ou seja, já está presente ao nascimento e ocorre por uma anormalidade genética no desenvolvimento do feto.
Embora as crianças com essa anomalia sejam geralmente assintomáticas, algumas desenvolvem sintomas devido a complicações, tais como infecção urinária recorrente, cálculos renais ou obstrução urinária.
Como surge?
Para compreender como a ectopia renal surge, é importante aprender sobre o processo de formação dos rins e do trato urinário no feto. O processo embriológico humano é bastante complexo, por isso, explicaremos de modo mais simples possível.
Os rins passam por três estágios durante o seu desenvolvimento, que são, em ordem cronológica de aparecimento, o pronefro, o mesonefro e por fim, o metanefro. Este último, o metanefro, é o rim permanente e pode ser detectado já entre a quinta e a sexta semana de gestação.
O desenvolvimento inicial renal dá-se na região pélvica, em ambos os lados da aorta. À medida que o crescimento fetal avança, eles ascendem à região retroperitoneal — sua localização definitiva — por volta da nona semana de gravidez.
Além da elevação, os rins sofrem uma rotação de 90 graus em relação ao posicionamento pélvico, de modo que os vasos renais passam a se situar voltados para o centro do corpo. Qualquer perturbação neste processo de migração e rotação normal dos rins pode dar origem a anomalias congênitas.
Tipos de ectopia renal
O rim ectópico pode estar localizado acima, abaixo ou do lado oposto da posição normal do rim no trato urinário. Desta forma, a ectopia renal pode dividida em simples ou cruzada.
A ectopia renal simples se refere a um rim que apesar de estar do lado certo do corpo, não ascendeu até a fossa retroperitoneal. Neste caso, o rim ectópico pode não migrar e permanecer na região pélvica, pode migrar só até o meio do caminho ou então ultrapassar a localização correta e encontrar-se mais alto do que deveria. Se, entretanto, o rim tiver cruzado para o lado oposto, dá-se o nome de ectopia renal cruzada.
Frequentemente, o rim ectópico cruzado encontra-se fundido com o outro rim, em um processo chamado fusão renal, que será explicado mais adiante.
As anomalias renais congênitas estão entre os defeitos congênitos mais comuns, chegando em determinados estudos a estimativa de 1 caso em cada 1000 nascimentos. Entretanto, a incidência real destas anomalias é difícil de definir, visto que muitas pessoas são assintomáticas e nem sequer desconfiam ser portadoras das mesmas.
A pelve é a localização mais comum do rim ectópico. Quando o rim localiza-se na região pélvica é denominado rim pélvico.
Na maior parte dos casos, a ectopia renal é assintomática e acaba sendo diagnosticada em exames de rotina, como o ultrassom pré-natal ou outro exame de imagem realizado ao longo da vida do indivíduo.
Em alguns casos, o diagnóstico pode advir da investigação de algum sintoma provocado pelo rim ectópico, como infecção urinária, cólica renal ou obstrução do trato urinário.
O que é o rim em ferradura?
Conforme já mencionado, a fusão renal ocorre quando uma parte de um rim está ligado ao outro rim. O rim em ferradura é a anomalia de fusão mais comum que existe, atingindo 1 em cada 500 crianças.
No caso do rim em ferradura, além do defeito da migração de ambos os rins, ocorre a fusão de um ao outro. Os rins fundidos ficam ligados por isto um istmo de parênquima renal funcionante ou por tecido fibroso.
A fusão habitualmente acontece na parte renal inferior (90% dos casos), lembrando a forma de uma ferradura. Na maior parte das vezes, os ureteres e as unidades excretoras renais estão preservadas e os dois rins funcionam de forma independente.
O rim em ferradura pode estar localizado na posição anatômica habitual dos rins, sendo a fusão o seu único defeito. No entanto, na maioria dos casos, o rim em ferradura encontra-se ectópico, geralmente abaixo da vértebra L4 e da artéria mesentérica inferior.
Da mesma forma que o rim ectópico, o rim em ferradura não provoca sintomas na maior parte dos casos. É comum esta anomalia ser descoberta nos exames pré-natais.
Quando existem sintomas, estes estão habitualmente relacionados à obstrução urinária ou a episódios de infecção urinária. Eventualmente, a criança com rim em ferradura pode queixar-se de dor na região abdominal.
A constelação clássica de sintomas do rim em ferradura é: dor abdominal vaga que irradia para a região lombar inferior, náuseas e vômitos. O quadro é geralmente agravado quando o paciente faz hiperextensão da coluna.
A obstrução do fluxo de urina pode ocorrer em contexto de compressão externa do trato urinário, por outras anomalias associadas como a estenose da junção uretero-pélvica ou pela impactação de cálculos renais.
Condições genito-urinárias associadas
Tanto a ectopia renal como as anomalias renais de fusão podem estar presentes em associação com outras alterações urológicas ou genitais, tais como:
- Refluxo vesico-ureteral (RVU): anomalias significativas do trajeto e da inserção do ureter acontecem em conjunto com as anomalias renais, de modo que o fluxo de urina fica prejudicado, provocando refluxo de urina da bexiga para o ureter. Apesar de poder estar presente nas duas categorias de anomalias, o RVU é mais frequentemente associado aos casos de ectopia renal.
- Obstrução da junção uretero-pélvica (JUP): a obstrução da JUP (região onde o ureter e a pelve renal se conectam) também pode estar presente nos dois tipos de anomalias, mas ao contrário do RVU, esta condição é mais frequentemente associada aos casos de rim em ferradura.
- Cálculo renal: tanto a ectopia quanto a fusão renal são acompanhadas de alterações da anatomia normal do trato urinário que promovem lentidão da drenagem da urina, aumentando a chance de formação de cálculos renais.
- Hidronefrose: se houver dificuldade de escoamento, a urina fica retida no trato urinário. Dependendo do grau de retenção, pode haver inchaço do rim e eventualmente perda de função renal (leia também: Hidronefrose: causas, sintomas e tratamento).
- Doença renal crônica: tanto os episódios de infecção urinária de repetição como a obstrução crônica do trato urinário podem promover perda da função renal e desenvolvimento de insuficiência renal crônica.
- Alterações genitais: nos homens, são detectados frequentemente criptorquidia e/ou hipospádia. Nas mulheres, útero bicorno e septos vaginais podem estar presentes.
Doenças associadas
As anomalias congênitas renais podem fazer parte de síndromes genéticas que possuem outras manifestações clínicas além do comprometimento renal. Exemplos:
- Rim em ferradura pode ser uma característica da síndrome de Turner, da Trissomia 13, 18 ou 21.
- Tumor de Wilms, tumores de células transicionais e carcinoides são mais frequentes nos indivíduos com rim em ferradura.
- Anomalias gastrointestinais, cardiovasculares e esqueléticas são comumente diagnosticadas em conjunto com o rim em ferradura.
- Rim ectópico pode estar presente em associação a anomalias extra renais (cardíacas, ósseas, suprarrenais) ou como parte de síndromes raras, como Treacher Collins, Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser e Goldenhar.
Diagnóstico
Como já foi dito, muitas vezes o diagnóstico é efetuado por acaso por meio de exames de imagem, como a ultrassonografia. No entanto, existem anomalias que podem não ser diagnosticadas adequadamente pela ultrassonografia. Nestas situações, um exame mais detalhado, como a tomografia computadorizada, cintigrafia ou a ressonância magnética, são indicados.
O exame de imagem pormenorizado também é importante para excluir a presença de hidronefrose, para avaliar a anatomia regional, medir o tamanho dos rins e determinar se existem cálculos ou tumores renais.
Além do exame de imagem, a avaliação inicial do indivíduo com anomalia renal deve também incluir a pesquisa da função renal pelo exame de creatinina no sangue e exames de urina para detecção de proteinúria e avaliação do risco de formação de cálculos renais. A pressão arterial também deve ser monitorizada regularmente e tratada, caso esteja elevada.
Tratamento
A conduta frente ao diagnóstico de anomalia renal varia conforme a situação clínica de cada paciente e entre centros médicos, especificamente no que tange ao protocolo de seguimento. Grosso modo, a conduta obedece aos mesmos critérios clínicos, resumidos a seguir:
- Em caso de rim pélvico sem hidronefrose, outro rim com aspecto anatômico normal e função renal normal: apenas vigilância, sendo o tempo entre consultas e exames dependentes do protocolo de cada centro.
- Se houver hidronefrose e/ou infecções urinárias de repetição, a pesquisa de RVU está indicada, através da cistouretrografia retrógrada miccional.
- Se houver hidronefrose e/ou infecções urinárias de repetição sem RVU (cistouretrografia retrógrada miccional normal), é preciso descartar que exista obstrução urinária através da cintigrafia renal com DTPA ou MAG-3.
- Em casos de hidronefrose leve a moderada sem RVU, alguns centros optam por manter somente vigilância a cada 3-6 meses, para tentar perceber se a hidronefrose agrava. Em casos de hidronefrose grave, está indicada a observação urológica especializado neste gênero de malformação, para programar a melhor estratégia de tratamento e seguimento.
- Se houver alteração da função renal e/ou detecção de alterações do outro rim em exames de imagem, está indicada investigação adicional com cintigrafia renal com DMSA, para determinar a função renal em cada rim e a presença de cicatrizes renais.
- Intervenções cirúrgicas para desobstrução, remoção de cálculos ou correção do refluxo só devem ser efetuadas em casos específicos pelo risco elevado de complicações e pelas alterações anatômicas presentes tanto no próprio rim quando nos vasos que irrigam o órgão.
- Em casos de lesão renal extensa com perda significativa de função renal, pode estar indicada a remoção do rim com a anomalia. É possível viver normalmente somente com um rim funcionante.
- Não há necessidade de restrição de atividades físicas. Apesar de o rim pélvico estar mais sujeito a traumas pela sua localização menos protegida, não existem estudos que justifiquem esta recomendação.
Prognóstico
De uma forma geral, pode-se dizer que o rim em ferradura e o rim pélvico são anomalias benignas, que podem ser assintomáticas em muitos casos. Mesmo que a anomalia renal provoque perda da função daquele rim, o outro rim pode facilmente suprir as necessidades do organismo sozinho.
No entanto, estas malformações podem estar associadas a complicações como infecções urinárias de repetição, cálculos renais, obstrução urinária, hipertensão arterial e perda de função renal. Nestes casos, cada paciente deve ser avaliado individualmente para definir qual é a melhor opção de tratamento para o seu caso.
Referências
- Managing urologic disease in the horseshoe kidney – The Grand Rounds in Urology.
- Renal ectopic and fusion anomalies – UpToDate.
- Horseshoe Kidney – StatPearls.
- Pelvic Kidney – StatPearls.
- Horseshoe Kidney Treatment & Management – Medscape.
- Ectopic Kidney – National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases (NIDDK).
- Campbell-Walsh Urology. 12th ed. Philadelphia, PA: Elsevier Saunders, 2021.
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