O que é o mieloma múltiplo?
O mieloma múltiplo (MM) é um tipo de câncer de medula óssea. A medula óssea é o tecido esponjoso presente no centro de alguns ossos, responsável pela produção das células sanguíneas do corpo.
É chamado mieloma múltiplo, pois o câncer geralmente afeta várias áreas do corpo, como coluna, crânio, pelve e costelas.
O mieloma múltiplo, a leucemia, o linfoma e a síndrome mielodisplásica são as principais causas de câncer que acometem as células de defesa do sangue, chamados leucócitos ou glóbulos brancos.
Cada uma dessas neoplasias, chamadas popularmente de cânceres do sangue, acomete um tipo de leucócito diferente. No caso do mieloma, a célula de defesa que sofre transformação maligna é o plasmócito, célula com a capacidade de produzir anticorpos contra organismos estranhos ao nosso corpo, como vírus, bactérias e fungos.
O mieloma múltiplo corresponde a 1 a 2% de todos os cânceres e a 15 a 20% dos cânceres sanguíneos. A sua incidência na população geral é de cerca de 7 casos para cada 100.000 habitantes. Em todo o mundo, existem aproximadamente 180.000 casos e 117.000 mortes por ano atribuídas ao MM.
Fatores de risco
O mieloma é uma doença típica de idosos, apenas 2% dos casos ocorrem antes dos 40 anos e menos de 10% antes dos 50 anos. A idade média dos pacientes que recebem o diagnóstico é de 65 a 74 anos.
O MM é mais comum em negros que em brancos (relação de 2:1) e mais frequente em homens que em mulheres (relação de 1.4:1).
Outros fatores de risco implicados no surgimento do mieloma são:
- Obesidade.
- Exposição a agentes químicos tóxicos, como benzeno, herbicidas, inseticidas, solventes orgânicos e agente laranja.
- Exposição à radiação.
- Predisposição genética (história familiar de MM).
Como surge
Leia os próximos parágrafos com calma, pois o seu entendimento é essencial para a compreensão dos sintomas e das alterações laboratoriais da doença.
Como já referido, o mieloma múltiplo é o câncer do plasmócito, a célula responsável pela produção dos anticorpos, chamados também de imunoglobulinas ou gamaglobulinas.
Assim como em outros tipos de câncer, o mieloma surge devido a mutações genéticas nas células, neste caso fazendo com que o organismo perca o controle da produção de plasmócitos, que passam a se multiplicar indefinidamente.
O resultado desta multiplicação descontrolada é um acúmulo de células plasmáticas malignas na medula óssea, órgão responsável pela produção de todas as células do sangue, e uma consequente produção excessiva de anticorpos.
Existem cinco tipos de anticorpos:
- IgG – Imunoglobulina G.
- IgA – Imunoglobulina A.
- IgM– Imunoglobulina M.
- IgD – Imunoglobulina D.
- IgE – Imunoglobulina E.
Dependendo do tipo de plasmócito que sofre a mutação maligna, teremos a hiperprodução do clone de um destes tipos de imunoglobulina (anticorpo). Por exemplo, no mieloma IgG, temos a proliferação de plasmócitos produtores do anticorpo IgG, o que resulta na produção excessiva de clones de imunoglobulina G (IgG monoclonal).
O tipo de mieloma múltiplo mais comum é o secretor de IgG, seguido, em ordem decrescente, pelos mielomas produtores de IgA e IgM. Mielomas secretores de IgD ou IgE são raros.
O mieloma secretor de IgM recebe o nome de Macroglobulinemia de Waldenström e apresenta alguns aspectos clínicos diferentes do mieloma múltiplo. Falaremos especificamente da macroglobulinemia de Waldenström em um artigo à parte que será escrito brevemente.
Esses clones de anticorpos produzidos no mieloma múltiplo são chamados paraproteínas ou proteínas M. Através de análises de sangue, essas paraproteínas podem ser detectadas.
A existência de proteínas M, ou seja, de clones de anticorpos, recebe o nome de gamopatia monoclonal. Portanto, toda vez que detectamos um número elevado de anticorpos no sangue, sendo todos eles exatamente iguais (clones), estamos diante de uma gamopatia monoclonal.
É importante entender a diferença entre anticorpos monoclonais e policlonais. Em casos de infecções ou processos alérgicos também podemos ter elevação dos anticorpos, estes, porém, não são todos um único clone, pois são produzidos por diferentes plasmócitos. Neste caso temos um gamopatia policlonal, que é uma resposta normal do organismo a processos infecciosos.
Resumindo:
- O mieloma é um câncer dos plasmócitos, células produtoras de anticorpos.
- Os plasmócitos doentes se multiplicam descontroladamente, ocupando boa parte da medula óssea.
- Os plasmócitos doentes produzem uma quantidade exagerada de anticorpos, todos eles iguais, pois resultam do mesmo grupo de plasmócitos, gerando uma gamopatia monoclonal.
O que é a gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS)?
O mieloma múltiplo quase sempre começa como uma condição relativamente benigna chamada gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS).
O MGUS é uma condição na qual há produção de paraproteinas, mas sem qualquer sinal de mieloma nem proliferação descontrolada dos plasmócitos na medula óssea.
A cada ano, cerca de 1 em cada 100 pessoas com MGUS desenvolve um câncer relacionado, a maior parte das vezes, mieloma múltiplo. No entanto, a maioria das pessoas com MGUS nunca desenvolve câncer ou precisa de qualquer tratamento.
Portanto, o mieloma múltiplo costuma ser precedido por um quadro de gamopatia monoclonal de significado indeterminado, mas a maioria das pessoas com MGUS não evolui para mieloma múltiplo.
Para ser considerado MGUS, o paciente precisa ter proteínas M detectáveis no sangue, mas nenhum dos sintomas do mieloma que serão descritos a seguir.
Sintomas do mieloma múltiplo
A medula óssea, responsável pela produção das células do sangue, fica localizada no interior dos ossos. Como uma das características do mieloma múltiplo é a proliferação sem controle dos plasmócitos na medula, uma das principais manifestações clínicas do mieloma é a lesão dos ossos.
O mieloma múltiplo costuma acometer vários ossos diferentes do nosso esqueleto, principalmente aqueles que possuem medula óssea no seu interior. Os principais exemplos são:
- Coluna vertebral.
- Crânio.
- Quadril.
- Costelas.
- Fêmur (osso da coxa).
- Úmero (osso do braço).
Dor óssea
As lesões ósseas causadas pelo mieloma podem se apresentar como fraturas, que surgem muitas vezes de forma espontânea ou após mínimos traumas. Também são comuns quadros semelhantes à osteoporose ou erosões focais parecidas com metástases ósseas de outros cânceres, conhecidas como lesões líticas.
Portanto, como a lesão dos ossos é muito comum, o principal sintoma do mieloma costuma ser a dor óssea. Quando a lesão acomete as vértebras da coluna vertebral, pode haver colapso da vértebra e compressão da medula nervosa (não confundir com a medula óssea). Como consequência, além da dor lombar, o paciente também pode apresentar fraqueza e perda da sensibilidade nos membros inferiores.
Hipercalcemia
A destruição dos ossos provoca um aumento da liberação do cálcio para sangue. O aumento do nível de cálcio no sangue chama-se hipercalcemia.
Os valores normais de cálcio sanguíneo variam de 8,5 a 10,0 mg/dL (pode variar um pouco de acordo com o laboratório). Níveis de cálcio sanguíneo acima de 15 mg/dl são graves, colocam a vida em risco e podem cursar com sintomas tais como: vômitos, excesso de urina, alterações neurológicas, letargia e coma.
Lesão renal
O comprometimento dos rins, com o desenvolvimento de insuficiência renal, é uma das principais manifestações do mieloma múltiplo.
A lesão dos rins ocorre principalmente devido à lesão dos túbulos renais pelas imunoglobulinas, pela hipercalcemia ou por invasão dos rins pelos plasmócitos malignos.
A principal causa de lesão renal no MM são as imunoglobulinas monoclonais, geralmente fragmentos dessas imunoglobulinas, chamadas cadeias leves.
Em situações normais, as cadeias leves existentes são filtradas livremente através do glomérulo renal, sendo amplamente reabsorvidas pelas células tubulares de volta para o sangue. No entanto, nos casos de mieloma, a produção de imunoglobulinas e cadeias leves é tão elevada que supera a capacidade de reabsorção dos túbulos, resultando em grande perda de imunoglobulinas e cadeias leves na urina.
As cadeias leves em excesso nos túbulos ligam-se a uma proteína chamada uromodulina (antigamente chamada mucoproteína de Tamm-Horsfall). Essa ligação faz com que as cadeias leves formem cilindros dentro dos túbulos, causando obstrução, reação inflamatória e destruição dos túbulos renais e dos tecidos ao seu redor. Essa lesão renal é conhecida como rim do mieloma.
Cerca de 20 a 50% dos pacientes com mieloma múltiplo apresentam creatinina elevada no momento do diagnóstico (leia: Creatinina e ureia [exame para avaliação dos rins]), sinalizando lesão renal.
O grau da insuficiência renal varia desde lesão leve que pode ser rapidamente revertida, como nos casos de desidratação ou hipercalcemia, até lesão renal aguda grave que requer tratamento com hemodiálise.
Anemia
Outra complicação comum do mieloma múltiplo é a anemia. Com a medula óssea completamente invadida pelos plasmócitos, ocorre uma progressiva redução na produção de outras linhagens de células sanguíneas, como as hemácias (glóbulos vermelhos), o que acaba por provocar anemia.
Seguindo o mesmo raciocínio, também podemos ter queda das concentrações de plaquetas e de leucócitos (glóbulos brancos).
Infecções
Apesar de haver um elevado número de anticorpos circulantes, na gamopatia monoclonal esses anticorpos são defeituosos. O organismo perde a capacidade de criar anticorpos específicos contra cada invasor e mantém a produção de apenas um clone de imunoglobulinas.
Por isso, apesar haver excesso de anticorpos circulando sangue, o paciente com mieloma múltiplo é um indivíduo mais susceptível a infecções.
Resumindo, o quadro clínico típico do paciente com mieloma é:
- Paciente com mais de 65 anos.
- Dor óssea, normalmente lombar.
- Aumento no nível de cálcio no sangue.
- Anemia sem causa aparente.
- Alterações no funcionamento dos rins.
Obviamente, o paciente não precisa ter todos os sintomas listados acima em simultâneo, princialmente em fases iniciais da doença. Porém, conforma o mieloma avança, o quadro clínico típico começa a ser comum.
Diagnóstico
Através de análises específicas de sangue e urina é possível identificar a presença dos clones de anticorpos. Esta pesquisa é feita por um exame chamado eletroforese de proteínas com imunofixação.
Alguns marcadores sanguíneos também costumam estar elevados no mieloma múltiplo, tais como o VHS, o LDH e a Beta 2-microglobulina. É importante destacar que esses exames de sangue são inespecíficos e podem estar alterados em várias outras doenças que não o mieloma.
A dosagem da creatinina sanguínea também é útil, pois ajuda a identificar lesões dos rins.
As radiografias de quadril, coluna, crânio e tórax conseguem detectar as lesões ósseas do mieloma e costumam fazer parte do processo de diagnóstico. Em locais com boa disponibilidade de recursos médicos, a avaliação do esqueleto pode ser feita com tomografia computadorizada, ressonância magnética ou PET scan.
Biópsia de medula óssea
Se os exames acima sugerirem a existência de um mieloma, o paciente deve ser encaminhado a um médico hematologista para realização de aspiração e biópsia da medula óssea, que são os exames que fornecem o diagnóstico definitivo do mieloma.
Se na biópsia ficar demonstrado que mais de 10% das células da medula são compostas por plasmócitos, o diagnóstico de mieloma múltiplo está confirmado.
Tratamento
Não existe cura para o mieloma múltiplo. O tratamento visa o alívio dos sintomas, melhora da qualidade de vida e o aumento do tempo de sobrevida.
Há várias modalidades de tratamento. O esquema mais indicado costuma ser decidido de acordo com dois fatores:
- Gravidade da doença.
- Elegibilidade para transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas.
Critérios de gravidade
Ao realizar a biópsia da medula óssea, o médico pode solicitar um teste chamado hibridização fluorescente in situ (FISH), que é uma técnica citogenética usada para detectar e localizar a presença de determinadas sequências de DNA nos cromossomos das células neoplásicas.
Não cabem aqui explicações complexas sobre as técnicas deste exame nem sobre a genética do mieloma. Para os pacientes, a informação importante é que a identificação de determinadas anormalidades cromossômicas nas células neoplásicas estão relacionadas com um quadro mais grave de mieloma múltiplo. São elas:
- t(4;14).
- t(14;16).
- t(14;20).
- del17p13.
- Ganho de 1q.
Valores elevados de LDH e Beta 2-microglobulina e baixos de albumina também costumam ser utilizados na estratificação de risco do MM.
Os pacientes com os achados acima são classificados como de alto risco, apresentam menor sobrevida e pior resposta aos tratamentos convencionais.
Transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas
Após diagnóstico e estratificação de risco, todos os pacientes com mieloma devem ser avaliados para determinar a elegibilidade para um transplante autólogo de células hematopoiéticas (TCTH)
A elegibilidade para TCTH autólogo no mieloma varia entre países e instituições. Na maioria dos países, o transplante para MM é oferecido a pacientes com menos de 65 anos. Pacientes com menos de 75 anos também podem ser candidatos de acordo com seu estado clínico.
A realização do transplante autólogo de células hematopoiéticas baseia-se no fato de que todas as células maduras que circulam no sangue têm origem em uma única célula, chamada célula-tronco.
O transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas consiste em retirar as células-tronco do próprio paciente e armazená-las. Antes de receber as células-tronco de volta, o paciente recebe doses de quimioterapia, geralmente com melfalan, para reduzir ao máximo a quantidade e a produção de plasmócitos neoplásicos na medula óssea. Este processo de “limpeza” da medula óssea é chamado condicionamento.
Uma vez feito o condicionamento, as células-tronco armazenadas são infundidas no sangue do paciente. As células-tronco infundidas encaminham-se naturalmente para a medula óssea, onde vão dar origem a uma nova população de células sanguíneas saudáveis.
Quando comparado com a quimioterapia isolada, o TCTH autólogo parece prolongar tanto a sobrevida livre de eventos quanto a sobrevida global.
A coleta de células-tronco deve ocorrer no início do curso de tratamento para todos os pacientes elegíveis, independentemente de o plano ser incorporar o TCTH ao tratamento inicial ou adiar até o momento da primeira recaída.
Esquemas mais indicados
Os pacientes elegíveis ao transplante de medula óssea costumam fazer 4 ciclos (4 meses) de quimioterapia com daratumumabe, bortezomibe, lenalidomida e dexametasona em dose baixa antes da coleta das células-tronco. Este tratamento visa reduzir o número de células tumorais na medula óssea e no sangue periférico, diminuir os sintomas e mitigar os danos aos órgãos-alvo.
Em alguns casos, a produção de imunoglobulinas é tão intensa a ponto de deixar o sangue espesso. Quando isso ocorre, antes da quimioterapia, é preciso realizar sessões de plasmaférese, um procedimento semelhante à hemodiálise, que reduz a concentração de células no plasma.
Após os 4 meses, o paciente pode escolher entre continuar o tratamento com quimioterapia por até 1 ano e guardar o transplante somente se houver recaída ou realizar o transplante precocemente.
Se o TCTH autólogo precoce for escolhido, o paciente após o procedimento mantém mais dois anos de quimioterapia com bortezomibe.
Nos pacientes não elegíveis para o TCTH , o tratamento costuma ser feito com bortezomibe, lenalidomida e dexametasona em dose baixa por 8 a 12 meses, seguido de um tratamento de manutenção com bortezomibe.
Prognóstico
A sobrevida do paciente com mieloma é, em média, de 5 anos para os casos detectados inicialmente e de 2 anos para os casos mais avançados.
Conforme a resposta ao tratamento, o prognóstico pode ser melhor ou pior.
- Resposta completa rigorosa (25% dos casos): sobrevida média maior que 5 anos e 80% dos pacientes ainda estarão vivos após cinco anos.
- Resposta completa (8% dos casos): sobrevida média de 81 meses e 53% dos pacientes ainda estarão vivos após cinco anos.
- Resposta quase completa (20% dos casos): sobrevida média de 60 meses e 47% dos pacientes ainda estarão vivos após cinco anos.
- Resposta parcial (25% dos casos): sobrevida média de 59 meses.
- Doença estável (5% dos casos): sobrevida média de 56 meses.
- Doença progressiva (4% dos casos): sobrevida média de 9 meses.
Referências
- Multiple myeloma: Clinical features, laboratory manifestations, and diagnosis – UpToDate.
- Multiple myeloma: Overview of management – UpToDate.
- Multiple myeloma: Pathobiology – UpToDate.
- Multiple myeloma: Staging and prognostic studies – UpToDate.
- Multiple Myeloma – Medscape.
- What Is Multiple Myeloma? – American Cancer Society.
- Kaushansky K, et al., eds. Myeloma. In: Williams Hematology. 9th ed. New York, N.Y.: McGraw-Hill Education; 2016.
- Goldman L, et al., eds. Plasma cell disorders. In: Goldman-Cecil Medicine. 25th ed. Philadelphia, Pa.: Saunders Elsevier; 2016
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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