Introdução
A nefropatia membranosa, também chamada de glomerulonefrite membranosa ou glomerulopatia membranosa, é uma doença de origem renal que provoca lesão nos microscópicos filtros dos rins, levando à perda de grandes quantidades de proteínas na urina e, frequentemente, ao desenvolvimento da síndrome nefrótica. Nos casos mais graves, essa nefropatia pode levar à insuficiência renal crônica terminal e necessidade de hemodiálise.
A nefropatia membranosa é uma das formas mais comuns de doença glomerular, sendo mais frequente em adultos do sexo masculino acima dos 30 anos de idade. Existe tratamento para a glomerulopatia membranosa, mas nem todos os pacientes precisam, pois a doença evolui de forma benigna em cerca de 70% dos casos.
O que é uma doença glomerular?
Não há como falar sobre uma doença glomerular sem antes explicar o que é um glomérulo. Portanto, comecemos pelo básico.
Todos os nossos órgãos são compostos por unidades básicas de funcionamento: temos os neurônios no cérebro, os hepatócitos no fígado, os alvéolos no pulmão, os miócitos cardíacos no coração e assim por diante. Nos rins, a unidade básica funcional é chamada de néfron.
Cada rim possui cerca de um milhão de néfrons. Essas unidades microscópicas são as responsáveis pela filtração do sangue e por alguns hormônios produzidos pelos rins. Cada néfron é composto por um glomérulo e seu respectivo túbulo renal. É nos glomérulos que fica a membrana basal, os verdadeiros filtros dos nossos rins. É lá que o sangue é filtrado e as substâncias em excesso ou desnecessárias direcionadas para a urina.
Um dos principais sinais de doença dos glomérulos é a presença de proteínas urinas. Em situações normais, quase não perdemos proteínas na urina porque elas são grandes demais para passarem pelos pequenos poros da membrana basal. Porém, quando há lesão da membrana basal, como a ocorre na nefropatia membranosa, as proteínas que antes eram barradas pelo filtro e permaneciam no sangue passam agora a ser eliminadas inapropriadamente na urina. A analogia mais fácil de ser feita para essa situação é com um coador ou uma peneira furada.
Explicamos o que é uma doença glomerular com mais detalhes no seguinte artigo: O que é glomerulonefrite?
O que é síndrome nefrótica?
Quando a lesão da membrana basal do glomérulo é grave, a perda de proteínas na urina — chamada de proteinúria — pode ser severa. Quando a eliminação de proteínas na urina é maior que 3500 mg (3,5 gramas) por dia, dizemos que o paciente tem proteinúria nefrótica.
Esse elevado grau de proteinúria costuma provocar urina espumosa, queda dos níveis de proteínas no sangue, edemas por todo o corpo e elevação do colesterol sanguíneo, alterações que caracterizam a síndrome nefrótica.
Explicamos a síndrome nefrótica e todos os seus sintomas no seguinte artigo: Síndrome nefrótica: causas, sintomas e tratamento.
O que é a nefropatia membranosa?
Feitas as devidas introduções aos temas glomerulopatia, proteinúria e síndrome nefrótica, podemos agora começar a falar especificamente da glomerulopatia membranosa.
A nefropatia membranosa é uma doença de origem glomerular, caracterizada por lesão da membrana basal, com consequente proteinúria, que pode ou não chegar a níveis nefróticos.
Cerca de 30% dos pacientes adultos com síndrome nefrótica têm como diagnóstico a nefropatia membranosa. A doença ocorre habitualmente em adultos acima dos 30 anos e é duas vezes mais comum em homens do que em mulheres.
A evolução clínica dessa glomerulopatia costuma ser variável, pois existem desde os casos com cura espontânea até aqueles que não respondem a nenhum tipo de tratamento e acabam perdendo completamente a função dos seus rins. Em geral, a história natural (i.e. o que acontece se não for tratada) da glomerulopatia membranosa pode ser descrita da seguinte forma:
- Até 30% dos pacientes podem ter remissão total da proteinúria de forma espontânea dentro de 5 anos.
- 25 a 40% dos pacientes podem ter remissão parcial da proteinúria de forma espontânea dentro de 5 anos (a proteinúria melhora, mas não desaparece totalmente).
- A ocorrência de doença renal terminal surge em aproximadamente 14% dos pacientes nos primeiros 5 anos, 35% em 10 anos e 41% em 15 anos.
Portanto, a nefropatia membranosa é uma doença habitualmente pouco agressiva, com mais da metade dos pacientes livres de hemodiálise nos primeiros 15 anos. Falaremos dos sinais que indicam uma forma mais agressiva da doença mais à frente nesse artigo.
Causas
A glomerulopatia membranosa pode ser dividida em formas primária e secundária. A nefropatia membranosa primária é aquela que surge sem que haja uma causa por trás. O paciente não tem nenhuma outra doença, apresentando apenas essa lesão glomerular. A nefropatia membranosa secundária, por sua vez, é obrigatoriamente provocada por alguma outra doença, que pode ser desde infecções virais até tumores.
Comecemos falando sobre a nefropatia membranosa secundária, que é a forma mais fácil de ser entendida.
Causas de nefropatia membranosa secundária
Cerca de 75% dos casos de glomerulopatia membranosa são primários. Apenas 25% apresentam uma causa identificável por trás. As mais comuns são:
- Lúpus eritematoso sistêmico.
- Hepatite B.
- Hepatite C.
- Câncer (principalmente de pulmão, cólon ou melanoma).
- Sífilis.
- Esquistossomose.
- Malária.
- Hanseníase.
- Fármacos (penicilamina, anti-inflamatórios, sais de ouro, probenecida, captopril em doses muito elevadas, terapia com inibidores do fator de necrose tumoral, como etanercept, infliximab ou adalimumab).
É importante destacar que apenas uma pequena parcela dos pacientes com as condições listadas acima acabam por desenvolver nefropatia membranosa. A maioria dos pacientes com hepatite B, hepatite C, câncer ou sífilis, por exemplo, nunca desenvolvem lesão dos glomérulos.
Nos casos secundários, o controle da doença de base costuma ser suficiente para tratar a nefropatia.
Causas de nefropatia membranosa primária
A origem das formas primárias são menos claras e mais complexas.
A nefropatia membranosa primária é uma doença de origem imunológica. Tudo indica que a doença surja porque o sistema imunológico passa a produzir anticorpos contra estruturas presentes na membrana basal, provocando deposição de complexos imunes que provocam danos à membrana filtradora. A nefropatia membranosa é, portanto, uma doença de origem autoimune (se você quiser entender melhor o que é uma doença autoimune, leia: Doenças autoimunes).
Recentemente, foi descoberto que até 80% dos pacientes com nefropatia membranosa primária apresentam anticorpos contra os receptores de fosfolipase A2, uma proteína presente na membrana basal glomerular. Esse anticorpo só existe nos pacientes com a forma primária da doença e já pode ser pesquisado através de exames de sangue. Quanto mais alto forem os títulos no sangue, mais agressiva costuma ser a doença.
Sintomas
Os principais sintomas da nefropatia membranosa decorrem da perda de proteínas na urina. Quanto mais grave for a proteinúria, mas intensos costumam ser os sinais e sintomas.
80% dos pacientes têm proteinúria suficientemente elevada para apresentarem síndrome nefrótica, sendo o inchaço dos membros inferiores (que pode evoluir para todo corpo) e uma urina bastante espumosa os sinais mais fáceis de serem detectados pelo paciente. Sangue visível na urina (hematúria macroscópica) é raro, mas pode acontecer em alguns casos. Hipertensão arterial surge em cerca de 30% dos casos.
Se a perda de proteínas for muito grande, geralmente acima de 10 gramas por dia, o risco de complicações torna-se mais elevado, sendo as infecções, principalmente pneumonia, e os eventos trombóticos os mais comuns. Trombose venosa profunda, trombose da veia renal e tromboembolismo pulmonar são muito mais frequentes nesses pacientes do que na população em geral.
Uma proteinúria elevada também está relacionada ao risco do paciente desenvolver insuficiência renal crônica. Quanto maior for a perda de proteínas e quanto mais tempo ela existir, maior é o risco do paciente entrar em falência renal e acabar ficando dependente de hemodiálise.
Achados laboratoriais
Nas análises laboratoriais, os principais achados são: elevação do colesterol, níveis baixos de albumina sanguínea e presença de proteínas nos exames de urina. Hematúria microscópica, ou seja, sangue na urina detectável apenas através do exame de urina, está presente em cerca de 50% dos casos.
Elevação da creatinina no sangue no início do quadro só ocorre em uma minoria dos pacientes, mas, quando presente, indica uma doença mais agressiva e um pior prognóstico.
Sinais de bom prognóstico
Os pacientes com proteinúria menor que 3,5 gramas por dia e com função renal normal (creatinina sanguínea normal) são aqueles que costumam apresentar doença mais branda, com bom prognóstico e elevada chance de melhora parcial ou total da doença mesmo sem tratamento.
Sinais de mau prognóstico
Proteinúrias persistentemente acima de 8 gramas por dia e elevação da creatinina no início do quadro, ou ao longo dos primeiros meses, são sinais de uma doença mais agressiva. Se após 6 meses não houver melhoria do quadro, a chance do paciente desenvolver insuficiência renal terminal* dentro dos primeiros 5 anos de doença é de 75%.
*Nota: raros são os casos em que o paciente morre devido à nefropatia membranosa. O que costuma acontecer na pior das hipóteses é o rins do paciente pararem de funcionar e ele ficar dependente de hemodiálise.
Diagnóstico
A nefropatia membranosa deve ser pensada em todos os pacientes adultos com síndrome nefrótica (nas crianças, a causa mais comum costuma ser outra doença glomerular, chamada doença de lesão minima). O médico indicado para conduzir a investigação e o tratamento é o Nefrologista.
Historicamente, todos os pacientes com síndrome nefrótica eram submetidos à biópsia renal, pois essa era a única forma de se fazer o diagnóstico. Porém, desde a descoberta do anticorpo anti-receptor da fosfolipase A2 (anti-PLA2R), o diagnóstico das formas primárias ficou mais fácil e seguro. Atualmente, a dosagem sanguínea desse receptor é feita antes de se pensar na biópsia. Se o paciente tiver um quadro clínico compatível, se não houver suspeita de causas secundárias e o anti-PLA2R for positivo, não é mais necessário levar o paciente à biópsia.
A biópsia renal hoje em dia fica reservada para os casos com apresentação atípica, doença muito agressiva desde o início ou para quando há suspeita de causas secundárias.
Tratamento
Nefropatia membranosa primária
Assim como quase toda doença de origem autoimune, o tratamento da nefropatia membranosa primária é feito com imunossupressores, que são fármacos fortes e com elevada taxa de efeitos colaterais. Entretanto, como até 70% dos pacientes apresentam melhora parcial ou total, mesmo sem tratamento, nem todos os pacientes acabam sendo candidatos à terapia imunossupressora. Se o Nefrologista achar que os riscos do tratamento superam os riscos da própria doença, esse tipo de tratamento não é indicado.
Portanto, pacientes com níveis baixos de proteinúria de forma persistente (i.e. menos de 4 gramas por dia por pelo menos 6 meses) são considerados de baixo risco, apresentam bom prognóstico e não costumam ser tratados com imunossupressores.
Pacientes com proteinúria entre 4 a 8 gramas por dia, que não apresentam melhora após 6 meses de observação, são considerados de moderado risco e costumam ser tratados com terapia imunossupressora.
Pacientes com mais de 8 gramas de proteinúria por dia ou com elevação da creatinina sanguínea são considerados de alto risco e costumam ser tratados desde o início com terapia imunossupressora.
Terapia imunossupressora para glomerulopatia membranosa
A forma de imunossupressão mais utilizada para a nefropatia membranosa é o chamado esquema de Ponticelli modificado, que consiste na administração de corticoides em doses elevadas e ciclofosfamida, administrados mensalmente, alternadamente, por 6 meses (corticoides nos meses 1,3 e 5 e ciclofosfamida nos meses 2,4, e 6).
Como um dos efeitos colaterais mais comuns da ciclofosfamida é a infertilidade, nos pacientes jovens que ainda pretendem ter filhos, o tratamento pode ser feito com ciclosporina.
Terapia não imunossupressora para glomerulopatia membranosa
Todos os pacientes, sejam eles de baixo, médio ou alto risco, devem ser tratados com medicamentos que reduzem a proteinúria. As duas principais classes de fármacos para esse fim são:
- Inibidores da enzima de conversão da angiotensina – iECA (ex: enalapril, lisinopril, ramipril, captopril e perindopril).
- Antagonistas do receptor da angiotensina II – ARA2 – (ex: losartana, candesartana, olmesartana, valsartana e telmisartana).
Ambas as classes são igualmente eficazes, não havendo estudos que mostrem superioridade de um qualquer um desses fármacos sobre os outros.
Se você quiser saber mais sobre os iECA e os ARA 2, leia: Remédios Para Hipertensão – IECA e ARA II.
Nefropatia membranosa secundária
Nos pacientes com a forma secundária da doença, o tratamento é direcionado para a doença de base. Ou seja, se o paciente tem hepatite C e desenvolve glomerulopatia membranosa, o tratamento deve ser feito para hepatite C. Se ele tiver sífilis, deve tratar a sífilis. Se a causa for algum medicamento, o tratamento passa pela suspensão do medicamento.
Na maioria dos casos, a nefropatia membranosa secundária desaparece conforme a doença de base é controlada.
Referências
- Membranous Glomerulonephritis – Medscape.
- Primary Membranous Nephropathy – Clinical Journal of the American Society of Nephrology.
- Idiopathic membranous nephropathy – Kidney International Supplements.
- Membranous Nephropathy – UNC Kidney Center and Division of Nephrology & Hypertension.
- Membranous Nephropathy – National Kidney Foundation Primer on Kidney Diseases (Sixth Edition) 2014.
- Membranous nephropathy: Clinical manifestations, pathology, and diagnosis – UpToDate.
- Membranous nephropathy: Epidemiology, pathogenesis, and etiology – UpToDate.
- Treatment of idiopathic membranous nephropathy – UpToDate.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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