O que é botulismo?
O botulismo é uma doença pouco comum, potencialmente fatal, resultante da ação de uma neurotoxina (toxina que ataca os neurônios) elaborada pela bactéria Clostridium botulinum. A neurotoxina botulínica é um dos venenos mais letais que conhecemos.
O botulismo é uma doença infecciosa, porém ele não é contagioso, ou seja, não é transmissível diretamente de uma pessoa para outra.
Apesar de ser uma infecção rara, o botulismo é uma doença importante, pois os pacientes contaminados apresentam elevada mortalidade e precisam iniciar tratamento rapidamente.
A infecção não é provocada diretamente pela bactéria, mas sim pelas neurotoxinas por ela produzidas. A doença tem instalação súbita, com acometimento predominantemente neurológico, caracterizada por paralisia motora progressiva. O principal modo de transmissão é através de alimentos mal conservados (explicaremos adiante).
O botulismo é doença de notificação compulsória. Entre 1999 a 2012 foram registrados 72 casos no Brasil, com 22 óbitos, uma mortalidade acima de 30%.
Devido à gravidade da doença e à possibilidade da ocorrência de múltiplos casos resultantes da ingestão de uma mesma fonte de alimentos contaminados, basta a notificação de um único caso para ser considerada a existência de um surto de botulismo.
Bactéria do botulismo: Clostridium botulinum
O Clostridium é um gênero de bactérias anaeróbicas (que não precisam de oxigênio para viver) em forma de bastonete, as quais algumas espécies podem causar doenças, como nos casos:
- Clostridium tetani: causadora do tétano.
- Clostridium botulinum: causadora do botulismo.
- Clostridium perfringens: causadora da gangrena gasosa.
- Clostridium difficile: causadora da colite pseudomembranosa.
O Clostridium botulinum é uma bactéria que pode estar presente em qualquer local, mas é mais facilmente encontrada no solo, em sedimentos de lagos e mares, nos intestinos de peixes e crustáceos, produtos agrícolas, mel ou nas superfícies de vegetais, frutas e outros alimentos.
O Clostridium botulinum se encontra no ambiente sob a forma de esporos, que são muito resistentes ao calor, podendo sobreviver até temperaturas de 100 °C durante cinco ou mais horas. Os esporos só são destruídos por aquecimentos acima de 120 °C, por pelo menos 15 minutos. Quando condições ambientais adequadas estão presentes, os esporos conseguem germinar e evoluir para a forma vegetativa, que é a forma ativa da bactéria, capaz de multiplicar-se e produzir toxinas.
As melhores condições para sobrevivência do Clostridium botulinum são:
- Pouca exposição ao oxigênio.
- Locais de baixa acidez.
- Temperatura entre 25 e 37 °C. No entanto, algumas cepas podem crescer em temperaturas tão baixas quanto 4 °C.
Alguns alimentos, principalmente aqueles em conserva, se não forem adequadamente manipulados e estocados, podem se transformar em um excelente meio para a proliferação do Clostridium botulinum.
Algumas cepas desta bactéria produzem enzimas que desnaturam e “estragam” os alimentos por elas habitadas, deixando-os com cheiro e aparência desagradáveis. Todavia, há cepas de Clostridium botulinum que podem colonizar alimentos sem provocar grandes alterações no seu aspecto, sendo difícil suspeitar que estejam contaminados.
Toxina botulínica
O Clostridium é uma bactéria que provoca doença através da produção de toxinas. No caso do Clostridium botulinum, a toxina é uma neurotoxina que ataca os nervos periféricos, impedindo o funcionamento normal dos mesmos.
A neurotoxina botulínica produzida pelo Clostridium botulinum é um dos venenos mais potentes que conhecemos. Apenas como comparação, para que o cianureto seja letal em ratos é preciso uma dose de 10.000 microgramas por quilo. Já a toxina botulínica é capaz de matar com apenas 0,0003 microgramas por quilo.
São conhecidos oito tipos de toxinas botulínicas: A, B, C1, C2, D, E, F e G, das quais as do tipo A, B e E são as mais tóxicas para os seres humanos. As formas F e G também podem provocar doença, mas é raro.
A toxina botulínica não tem cheiro nem sabor, não sendo possível saber de antemão se o alimento ingerido está ou não contaminado. As toxinas se ingeridas causam doença porque conseguem resistir ao ácido do estômago e às enzimas naturais do processo digestivo. Porém, ao contrário da bactéria, que consegue resistir a altas temperaturas sob a forma de esporos, a toxina costuma ser inativada quando exposta a temperaturas maiores que 80 °C por pelo menos 10 minutos.
A toxina absorvida no trato gastrintestinal alcança a circulação sanguínea e viaja até os nervos, onde ela age bloqueando a ação de neurotransmissores responsáveis pelos movimentos musculares, resultando em paralisia flácida dos músculos.
A toxina botulínica passou a ser usada na medicina para pacientes cuja paralisação controlada de alguns músculos mostrava-se benéfica. Porém, para ser administrada de modo seguro, foi preciso primeiro isolar e purificar a toxina para que esta pudesse ser sintetizada. Surgiu então o Botox®, a forma farmacêutica da toxina botulínica A.
Para saber mais sobre o Botox® e seus usos na medicina e na estética, leia: BOTOX | Aplicações e complicações.
Transmissão
Existem basicamente três formas de se adquirir o botulismo: botulismo alimentar, botulismo por ferimentos, botulismo intestinal (também chamado de botulismo infantil).
Botulismo por ferimentos
Esta forma de transmissão ocorre pela contaminação de feridas com o Clostridium botulinum proveniente do ambiente, geralmente do solo. As principais portas de entrada são úlceras dos membros, lesões traumáticas ou mesmo feridas cirúrgicas. O botulismo também pode ser transmitido através do uso de drogas injetáveis, como heroína, ou drogas aspiráveis, como cocaína (leia: Cocaína e Crack | Efeitos e complicações).
Botulismo alimentar
O botulismo alimentar surge quando o paciente ingere alimentos contaminados com a toxina botulínica, o que geralmente ocorre com comidas conservadas de maneira inadequada. Os mais envolvidos são: conservas vegetais artesanais, como palmito e picles; produtos de carne cozidos, curados e defumados de forma artesanal, como salsicha, presunto e carne de lata; pescados defumados, salgados e fermentados; queijos e mel artesanal. O botulismo também pode ocorrer em alimentos enlatados industrializados.
Botulismo intestinal (botulismo infantil)
Ocorre geralmente em crianças com idade entre 1 semana e 1 ano (maioria dos casos entre 3 e 26 semanas) e resulta da ingestão dos esporos de Clostridium botulinum presentes nos alimentos ou solo.
Esta forma é comum no mel, que é um alimento que frequentemente está contaminado com o Clostridium botulinum. Porém, a grande quantidade de açúcar do mel impede a transformação dos esporos para a sua forma vegetativa, não havendo, portanto, produção de toxinas. Após a ingestão, ao chegarem aos intestinos, os esporos encontram um meio mais propício para ficarem ativos, passando a se multiplicar e a produzir toxinas.
Crianças pequenas ainda não possuem uma flora de bactérias no intestino capaz de protegê-las contra a invasão do Clostridium botulinum, permitindo que o mesmo se estabeleça facilmente e passe a produzir toxinas diretamente dentro do intestino.
Esta forma não costuma acometer adultos saudáveis, pois os esporos não conseguem se fixar aos intestinos. Todavia, adultos com doenças dos intestinos também podem adquirir este tipo de botulismo. Os fatores de risco costumam ser: cirurgias intestinais, doença de Crohn ou uso de antibióticos por tempo prolongado, o que provoca eliminação da flora intestinal natural.
Sintomas
O período de incubação do botulismo varia de acordo com a forma de transmissão. No botulismo alimentar, como as enzimas já estão prontas nos alimentos, o período de incubação costuma ser curto, na maioria dos casos entre 12 e 36 horas, mas pode variar entre 2h até 10 dias, dependendo da quantidade de toxinas presentes.
Já no botulismo por ferimentos, o tempo médio de incubação é de 7 dias, podendo variar entre 4 a 21 dias.
No botulismo infantil não temos informações precisas sobre o período de incubação, pois é muitas vezes difícil identificar quando os esporos foram ingeridos. Em geral, este período é mais longo que na forma alimentar, já que os esporos ingeridos precisam primeiro se fixar ao intestino, para depois passarem para forma vegetativa e, somente então, começarem a produção de neurotoxinas.
Sintomas do botulismo alimentar
O botulismo é uma doença de início súbito e progressivo, caracterizado por sintomas gastrointestinais e neurológicos.
As manifestações gastrintestinais costumam ocorrer no início do quadro, mas isso não é obrigatório. Os sintomas mais comuns são: náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal.
As manifestações neurológicas costumam ser as mais importantes, caracterizadas por uma paralisia muscular que atinge inicialmente os nervos cranianos e vai descendo para o resto do corpo. O quadro é bem parecido com a síndrome de Guillain Barré, a diferença é que o botulismo começa na cabeça e progride de forma descendente, enquanto no GB, a paralisia muscular começa nas pernas e vai subindo (leia: Síndrome de Guillain-Barré).
Os sintomas neurológicos do botulismo costumam se iniciar com visão borrada ou visão dupla, paralisia das pálpebras, dilatação das pupilas e limitação dos movimentos dos olhos.
A partir dos olhos, a doença começa a atingir também o resto da cabeça, comprometendo a fala, a mastigação, a capacidade de engolir e os movimentos da língua. O próximo passo é o acometimento dos músculos do pescoço, impedindo o paciente de sustentar o peso da cabeça.
Quando chega ao tronco, a paralisia pode comprometer o funcionamento dos músculos do diafragma, responsáveis pela respiração, levando o paciente à insuficiência respiratória aguda e necessidade de ventilação mecânica (respirador artificial).
Junto com o tronco, a paralisia costuma acometer também os braços e depois o abdômen e membros inferiores, levando o paciente a uma tetraplegia flácida (paralisia flácida dos 4 membros). Boca seca, paralisia dos intestinos, hipotensão e retenção urinária também são sintomas comuns.
Como a neurotoxina ataca somente os nervos musculares, não há comprometimento da sensibilidade, isto é, o paciente sente tudo, ele apenas não consegue mover os músculos. Também não há cegueira e o indivíduo permanece consciente o tempo inteiro.
Os sintomas do botulismo costumam progredir durante uma ou duas semanas, estabilizando-se por mais 2 semanas antes de iniciar uma lenta fase de recuperação, que costuma durar até 3 meses. Nos casos mais graves, a recuperação completa pode levar até um ano.
A gravidade do quadro depende da quantidade e do tipo de toxina ingerida (A e B costumam ser as mais agressivas). A gravidade do botulismo pode variar desde um quadro leve, com sintomas intestinais e apenas mínimo acometimento dos nervos cranianos, até uma doença fulminante, com óbito em apenas 24 horas. A paralisia respiratória ocorre em 30 a 50% dos casos. As internações costumam ser de no mínimo 1 mês, porém, pode haver pacientes que precisem ficar hospitalizados por até 3 meses.
Sintomas do botulismo por ferimento
O quadro clínico do botulismo por ferimentos é praticamente igual ao botulismo alimentar, exceto pelo período de incubação mais longo e ausência de sintomas gastrointestinais. A febre pode ocorrer também, mas ela costuma ser devido à infecção da ferida e não pela ação direta das toxinas.
Sintomas do botulismo infantil
O botulismo infantil ataca preferencialmente os bebês e manifesta-se geralmente com constipação e irritabilidade, que evoluem para sinais neurológicos, como dificuldade de controlar os movimentos da cabeça, sucção fraca, engasgos, choro fraco, prostração e paralisias bilaterais descendentes, que podem provocar paradas respiratórias.
A gravidade do botulismo infantil também é variável, podendo haver casos leves caracterizados apenas por dificuldade alimentar e discreta fraqueza muscular, até casos graves com morte súbita da criança.
Diagnóstico
O diagnóstico do botulismo é habitualmente feito com isolamento das toxinas nas fezes ou no sangue. A pesquisa da própria bactéria Clostridium botulinum nas fezes também é possível. Nos casos de botulismo por ferimentos, não adianta examinar as fezes, é preciso procurar pela bactéria da ferida ou no sangue.
Quanto mais precoce for a coleta de material, maior será a chance de encontrar toxinas ou bactérias presentes.
Por questões de saúde pública é importante também pesquisar pela toxina ou esporos em alimentos recententemente ingeridos pelo paciente, princialmente os de maior risco, como mel, alimentos em conserva, peixes em lata mal conservados, etc. Nos últimos anos, em todo mundo, houve casos relatados de botulismo provocados por queijos, sardinha enlatada, pimenta, palmito em conserva, mortadela, tofu, produtos suínos, azeitonas em conserva e jiló.
Tratamento
Todo paciente com suspeita de botulismo deve ser imediatamente internado para acompanhamento da função respiratória.
Existe um antídoto para a toxina botulínica, chamado soro antibotulínico (SAB). Este tratamento, porém, só atua contra a toxina circulante no sangue, ou seja, contra aquelas que ainda não se fixaram aos nervos. Portanto, quanto mais precocemente o soro antibotulínico for iniciado, maior será a sua eficácia. Antibióticos, como a penicilina, podem ser usados nos casos de botulismo por feridas, ajudando a eliminar qualquer bactéria que esteja se reproduzindo dentro das lesões. Nos pacientes alérgicos à penicilina, o Metronidazol é uma opção.
Em geral, a maioria dos pacientes que recebem atendimento médico e cuidados respiratórios precoces apresentam uma recuperação completa ou quase completa, podendo voltar a exercer qualquer tipo de atividade. Por outro lado, os pacientes com doença grave e/ou demora no início do tratamento poderão permanecer com sequelas.
O botulismo não fornece imunização permanente. Uma mesma pessoa pode ter botulismo mais de uma vez na vida.
Referências
- Botulism – UpToDate.
- Botulism – Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
- Botulism – World Health Organization (WHO).
- Ferri FF. Botulism. In: Ferri’s Clinical Advisor 2018. Philadelphia, Pa.: Elsevier; 2018.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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