Introdução
A cólera é um quadro de diarreia aguda provocada por determinadas cepas da bactéria Vibrio cholerae produtoras de enterotoxinas virulentas. Essas toxinas são capazes de alterar o funcionamento dos intestinos, provocando grande perda de água e de eletróticos, tais como bicarbonato, sódio, cloro e potássio.
A cólera costuma ser adquirida através do consumo de água contaminada, e a sua diarreia, nos casos graves, é muito mais intensa do que os quadros de diarreia que a maioria das pessoas costuma ter de tempos em tempos.
Na cólera, a quantidade de líquido perdida nas fezes é tão grande e ocorre em espaço de tempo tão curto, que se o paciente não receber tratamento em tempo hábil, ele pode desenvolver um quadro de desidratação grave e choque hipovolêmico em apenas 12 a 24 horas.
Neste artigo, explicaremos o que é a cólera, como a bactéria Vibrio cholerae pode ser adquirida, quais são os seus sintomas, que tipo de tratamento deve ser instituído e quais são as formas eficazes de prevenção.
O que é a cólera?
Como já referido na introdução deste artigo, a cólera é uma infecção intestinal provocada pela bactéria Vibrio cholerae. Existem cerca de 190 cepas diferentes de Vibrio cholerae, porém, somente 2 delas, conhecidas como V. cholerae O1 e V. cholerae O139, produzem enterotoxinas que são capazes de provocar o quadro de cólera.
A cólera é uma doença muito antiga, com relatos que datam o ano de 460 AEC. Contudo, foi somente em 1854 que se descobriu que a infecção poderia ser provocada pelo consumo de água contaminada. Já o reconhecimento de que a doença era provocado pela bactéria Vibrio cholerae só ocorreu em 1883.
Nos últimos 200 anos, o mundo vivenciou 7 grandes pandemias de cólera, que juntas foram responsáveis por milhões de mortes. A chamada 7ª pandemia de cólera iniciou-se na Indonésia em 1961 e persiste até os dias hoje. Segundo o Organização Mundial de Saúde (OMS), no mundo inteiro, a cólera ainda é responsável por cerca de 5 milhões de infecções e 100 mil mortes por ano.
No Brasil, a última epidemia de cólera ocorreu em 1991, sendo responsável por 168.646 casos e 2.035 óbitos até o ano de 2004, a maioria deles nos estados do Norte e do Nordeste. Desde 2005, porém, o país não registrou mais casos de transmissão da cólera dentro do nosso território.
Formas de transmissão
A via de transmissão da cólera é fecal-oral, ou seja, uma pessoa saudável precisa entrar em contato com as fezes de uma pessoa doente para adquirir a bactéria. Esse contágio é feito habitualmente através de águas contaminadas, o que é comum em locais muito pobres, com deficiente saneamento básico. Regiões em guerra ou acometidas por desastres naturais também costumam sofrer com epidemias de cólera.
Mas não é somente o consumo de água contaminada que pode provocar a transmissão do Vibrio cholerae. Mãos contaminadas são uma frequente fonte de contaminação, seja na hora de preparar os alimentos ou por contato direto com outras pessoas. Se o paciente contaminado não tiver o hábito de higienizar as mãos adequadamente após cada evacuação, o risco de contaminação de pessoas que vivem ao seu redor é muito grande (leia: Por que lavar as mãos ajuda a evitar doenças?).
Estudos mostram que a cada litro de diarreia que o paciente elimina, ele libera no ambiente cerca de 1 trilhão de bactérias Vibrio cholerae. A concentração de bactérias na água que costuma ser suficiente para causar contágio é de 100 mil por litro, ou seja, mais de 1 milhão de vezes menor que aquela eliminada nas fezes.
Sintomas
Após um período de incubação que costuma ficar entre 1 ou 2 dias, mas que pode variar de poucas horas até 5 dias, a maioria dos pacientes infectados com cólera apresenta um quadro de diarreia leve a moderada, que é igual a qualquer outra forma de diarreia, incluindo as gastroenterites virais.
Vômitos e dor abdominal podem ocorrer, mas a febre é um sintoma incomum. Também existem os casos completamente assintomáticos, nos quais o paciente nem sequer desconfia ter sido infectado.
Em 5 a 10% dos casos, contudo, a cólera pode se apresentar como uma diarreia aquosa profusa. A diarreia da cólera grave é bem característica, com odor de peixe e uma aparência semelhante à “água de arroz”, devido a sua coloração esbranquiçada. O quadro diarreico costuma durar de 4 a 6 dias, sendo mais intenso nas primeiras 48 horas.
A grande perda de líquidos, que pode chegar a ser de mais de 1 litro por hora, costuma levar o paciente a um quadro de desidratação grave em poucas horas. Os sintomas da desidratação são sede intensa, boca seca, prostração, olhos fundos, perda de peso e redução do volume urinário. A eliminação de água é tão intensa, que o paciente pode perder o equivalente ao seu peso em líquidos.
Não é de estranhar, portanto, que os quadros de cólera grave, se não tratados a tempo, invariavelmente levam o paciente ao choque hipovolêmico e, consequentemente, ao óbito. A taxa de mortalidade chega a ser de 70% para os casos graves que não recebem tratamento médico.
A grande perda de eletrólitos nas fezes também é responsável por alguns dos sintomas, entre eles as câimbras musculares, hipoglicemia, convulsões e redução do nível de consciência.
Diagnóstico
O diagnóstico da cólera é feita através de isolamento do V. cholerae na cultura de fezes. Todavia, como a cólera é um quadro que pode levar ao óbito em poucas horas, o tratamento precisa ser iniciado antes mesmo de qualquer resultado laboratorial. A confirmação do diagnóstico, portanto, é mais importante do ponto de vista de vigilância epidemiológica do que para o tratamento do paciente.
Tratamento
O que faz a cólera ser um quadro potencialmente fatal é a grave e rápida instalação da desidratação. Consequentemente, a base do tratamento da cólera deve ser sempre uma hidratação agressiva, de forma a compensar o grande volume de líquidos perdidos nas fezes. Idosos e crianças são os grupos sob maior risco de terem complicações pela desidratação.
Se o paciente não tiver vômitos, a hidratação pode ser feita por via oral, de preferência com os soros de reidratação oral, que contêm as quantidades de eletrólitos e glicose adequadas para o tratamento das diarreias. Se não houver soro de reidratação disponível, o quadro pode ser inicialmente tratado com o soro caseiro, até que o soro de reidratação oral possa ser adquirido em uma farmácia ou posto de saúde (leia: Tratamento caseiro da diarreia).
Nos bebês com diarreia, manter o aleitamento materno, junto com o soro de reidratação, é essencial. Já as crianças mais velhas e os adultos devem tentar se alimentar normalmente, evitando apenas alimentos gordurosos ou derivados de leite.
Pessoas que irão viajar para áreas onde a cólera é comum devem sempre levar consigo, de forma preventiva, os envelopes para preparo do soro de reidratação. Oito envelopes por pessoa é o número sugerido.
Nos casos mais graves, quando o paciente tem vômitos que impedem a reidratação ou quando ele não consegue se hidratar por via oral de forma proporcional à intensidade da diarreia, a internação hospitalar para administração de soros por via intravenosa está indicada.
Medicamentos antidiarreicos, como a loperamida (Imosec), que agem inibindo a peristalse (movimentos) dos intestinos, estão contraindicados no tratamento da cólera. Os motivos são dois:
1- Uma das funções da diarreia é eliminar as bactérias e suas toxinas do corpo. Se o paciente toma um medicamento que inibe a diarreia, ele impede esse processo de “limpeza”, o que facilita a proliferação do V. cholerae nos intestinos e atrasa a cura da doença.
2- O fato dos intestinos pararem de se contrair não impede que a imensa perda de água continue a ocorrer. A diferença é que em vez das fezes líquidas serem eliminadas, elas ficam se acumulando dentro do trato intestinal. Os antidiarreicos, portanto, apenas mascaram os sintomas e torna mais difícil a avaliação da quantidade de líquidos que o paciente está perdendo a cada hora.
Apesar de não ser o elemento mais importante do tratamento, o uso de antibiótico pode ajudar a reduzir o tempo de doença, principalmente se for iniciado nas primeiras 24 horas de diarreia. Os esquemas mais recomendados são a Azitromicina 1 g em dose única ou a Doxiciclina 300 mg, também em dose única.
Nos casos sem gravidade, o uso de antibióticos não é justificável, já que eles não mudam o curso da doença nem interferem na disseminação do V. cholerae.
Nos pacientes que conseguem manter-se hidratados durante a fase mais aguda da cólera, a taxa de mortalidade da cólera é menor que 0,5%.
Prevenção
Do ponto de vista de saúde pública, a forma mais eficaz de prevenir a cólera é através da ampla implementação de saneamento básico e água encanada.
Do ponto de vista individual, lavar as mãos com frequência e evitar o consumo de água e alimentos de origem suspeita são importantes.
Vacina contra cólera
Já existem vacinas contra a cólera, que podem ser administradas por via oral. A vacina é eficaz durante as epidemias e para as pessoas que irão viajar para áreas endêmicas. A duração da sua eficácia, porém, começa a ficar comprometida após 6 meses, sendo necessário um reforço caso o paciente permaneça por mais tempo em áreas de alto risco.
Referências
- Cholera – World Health Organization.
- Cholera – PAHO.
- Cholera: Clinical features, diagnosis, treatment, and prevention – UpToDate.
- Cholera: Microbiology and pathogenesis – UpToDate.
- Cholera – Vibrio cholerae infection – Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
- Kliegman RM, et al. Cholera. In: Nelson Textbook of Pediatrics. 21st ed. Elsevier; 2020.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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