O que é a celulite infecciosa?
A celulite infecciosa ou celulite bacteriana é uma infecção da pele e dos tecidos subcutâneos provocada por bactérias.
O termo “celulite” costuma causar alguma confusão, já que se refere a duas doenças de pele complemente diferentes. A celulite mais conhecida, que é a de ordem estética, são aquelas indesejadas irregularidades na pele que proporcionam uma aparência semelhante à casca de laranja. Essa forma de celulite é provocada por acúmulo de gordura e desarranjos na anatomia do tecido subcutâneo. Seu nome médico correto é hidrolipodistrofia ginóide. Temos um artigo dedicado ao tema: Celulite: causas e tratamento.
Já o termo médico celulite se refere à infecção das camadas mais profundas da derme e da hipoderme, também conhecida como tecido subcutâneo, especialmente pelas bactérias Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus.
Portanto, ao longo do artigo, sempre que usarmos a palavra celulite, estaremos falando da celulite infecciosa.
Para entender como surgem as infecções cutâneas, precisamos começar pelo papel fundamental da pele como barreira protetora e pela estrutura complexa de suas camadas. Assim sendo, antes de mergulharmos no quadro clínico da celulite, falaremos um pouco sobre esses dois tópicos.
A pele como barreira protetora
A pele atua como uma armadura natural contra microrganismos externos. A pele íntegra e saudável mantém os germes do lado de fora do nosso corpo, impedindo infecções.
Imagine por um instante o que ocorreria se não tivéssemos a pele. Nossos órgãos vitais, tecidos mais profundos, sistemas nervosos e circulatórios estariam expostos ao ambiente, tornando-nos alarmantemente suscetíveis a infecções. Assim, não é surpreendente que todos os seres vivos complexos tenham desenvolvido algum tipo de barreira defensiva análoga à pele.
Ao mesmo tempo, por estar sempre em contato direto com o mundo exterior, a pele serve de habitat para um enorme ecossistema microbiano composto por bilhões de bactérias, fungos e vírus. Estes microrganismos, que compõem a microbiota cutânea, normalmente são inofensivos, e muitos desempenham funções benéficas, incluindo a defesa contra outras bactérias mais hostis.
Contudo, essa dinâmica pode mudar quando a pele é danificada, como nos casos de feridas. Até mesmo um ferimento superficial pode romper essa muralha defensiva, proporcionando uma brecha para que esses microrganismos naturais da pele invadam os tecidos internos.
A seriedade da infecção da pele costuma estar relacionada à profundidade que os patógenos conseguem alcançar. Dependendo dessa variável, diferentes condições clínicas podem se manifestar, cada uma necessitando de um tratamento específico.
Tipos de infecção e camadas da pele
A pele é dividida em três camadas:
- Epiderme: camada mais superficial da pele. Essa fina camada é a que a gente efetivamente vê quando olha para a pele. Nela estão presentes células mortas e grande quantidade de queratina, que se descamam continuamente. A epiderme não tem vascularização, por isso não há sangramento quando as lesões de pele são muito superficiais.
- Derme: situada abaixo da epiderme, a derme é composta por tecido conjuntivo e contém várias estruturas, como vasos sanguíneos, vasos linfáticos, glândulas sudoríparas, glândulas sebáceas, folículos pilosos e terminações nervosas. Se a lesão da pele provoca sangramento, é porque a derme foi atingida.
- Hipoderme: também chamada de tecido subcutâneo, é a camada mais profunda da pele, composta principalmente por tecido adiposo (gordura). A hipoderme ajuda a isolar o corpo, mantendo o calor corporal e protegendo os órgãos internos de impactos. Além disso, serve como uma reserva de energia para o corpo. Abaixo da hipoderme encontram-se a fáscia profunda e os músculos.
As infecções da pele são classificadas consoante a camada afetada e sua extensão. Portanto, são vários os tipos de infecção da pele, alguns deles já abordadas em outros artigos, como micoses, foliculite, impetigo, furúnculo, erisipela, celulite, ectima, abscessos e fasciíte necrotizante.
Observe a ilustração abaixo que retrata as camadas da pele. Note que a celulite é a infecção bacteriana que afeta a derme e a hipoderme. A celulite é uma infecção cutânea mais profunda que o impetigo e a erisipela, porém, mais superficial que a fasciíte necrotizante.
Diferenças entre erisipela e celulite
Tanto a erisipela quanto a celulite manifestam-se por meio de lesões cutâneas de aparências semelhantes, muitas vezes dificultando a distinção entre elas. Ambas as condições exibem sinais característicos de infecção cutânea, que incluem vermelhidão, calor no local da lesão, dor intensa e edema. De fato, muitos autores tendem a classificar a erisipela como uma forma mais superficial de celulite.
No entanto, existem características específicas que podem facilitar o diagnóstico diferencial entre a erisipela e a celulite. Dado que a erisipela é uma infecção de camadas mais superficiais da pele, as lesões costumam exibir um relevo sutil e margens mais nitidamente delineadas. Durante o exame da pele, é possível determinar com clareza onde a infecção começa e onde termina; a fronteira entre a pele acometida e a pele saudável é bem demarcada.
Por outro lado, a celulite, por sua natureza de afetar tecidos mais profundos, não exibe limites tão bem definidos. As lesões tendem a ser mais difusas, e frequentemente é desafiador estabelecer com precisão onde a infecção começa e onde termina. A imagem a seguir oferece um exemplo claro da diferença entre as lesões da celulite e da erisipela.
Na foto acima, selecionamos dois casos em que a distinção entre erisipela e celulite é fácil. Entretanto, na prática clínica, nem sempre as características das lesões são tão nítidas a ponto de nos permitir diagnosticar as duas infecções facilmente. Quando há dúvidas, escolhemos um antibiótico que cubra ambas infecções.
A tabela abaixo resume as principais diferenças clínicas entre a celulite e a erisipela.
Erisipela | Celulite | |
---|---|---|
Camada da pele afetada | A erisipela geralmente afeta a região mais superficial da derme e o tecido linfático subjacente. | A celulite afeta a derme profunda e o tecido subcutâneo. |
Sintomas na pele | A área de pele afetada é claramente definida, vermelha, inchada, quente ao toque, e muitas vezes tem uma superfície elevada e brilhante. Pode também ocorrer formação de bolhas. | A área de pele afetada também é vermelha, inchada e dolorosa, mas as bordas são geralmente menos definidas do que na erisipela. A pele pode ter uma aparência mais normal e a textura pode parecer mais dura ou firme ao toque. |
Sintomas gerais | Calafrios, febre e mal-estar são comuns. | Também podem haver febre e calafrios, mas os sintomas sistêmicos costumam surgir de forma mais lenta do que na erisipela. |
Causa | Geralmente causada pela bactéria Streptococcus pyogenes. | Pode ser causada por várias bactérias, mas as mais comuns são Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes. |
Localização | Mais comum nas pernas e na face, mas pode ocorrer em qualquer parte do corpo. | Pode ocorrer em qualquer parte do corpo, mas é mais comum nas pernas. |
Complicações | Se não for tratada, pode levar a problemas graves como septicemia e infecções em outras partes do corpo. | A celulite não tratada também pode levar a complicações sérias, como abscessos profundos (coleções de pus) e sepse. |
Falamos mais especificamente da erisipela no artigo: Erisipela: o que é, sintomas, causas e tratamento.
Fatores de risco
A celulite é uma infecção observada com mais frequência em adultos de meia-idade e idosos. Já a erisipela ocorre em crianças pequenas e adultos mais velhos. As infecções de pele são mais comuns nos meses mais quentes do ano.
Com relação aos fatores de risco, qualquer ferida que sirva de porta de entrada para bactérias pode levar ao desenvolvimento de infecções na pele. Entre as mais comuns podemos citar:
- Cortes e feridas simples.
- Pé de atleta (frieira).
- Eczemas.
- Impetigo.
- Varicela (catapora) ou outras erupções da pele.
- Espinhas (acne).
- Picadas de mosquito.
- Unha encravada ou qualquer outra lesão da unha.
- Micose de unha.
- Uso de drogas endovenosas.
- Queimaduras.
- Mordidas de animais.
- Implantação de piercings.
A quebra da barreira da pele é um fator essencial, mas não é único. A maioria das pessoas com lesão na pele não desenvolve celulite nem erisipela. Isso ocorre porque seus sistemas imunológicos conseguem dar conta das bactérias que invadem a pele através das feridas.
Portanto, além das lesões de pele, existem ainda outros fatores associados a um maior risco de celulite. São eles:
- Obesidade.
- Diabetes mellitus.
- Uso de corticoides.
- Imunossupressão.
- Pacientes com edema crônico dos membros inferiores.
- Insuficiência venosa dos membros inferiores.
- Má circulação arterial nos membros inferiores.
- Alcoolismo.
- Extração prévia de veia safena para cirurgia de revascularização do miocárdio.
Bactérias que causam celulite
A causa mais comum de celulite são os estreptococos beta-hemolíticos (grupos A, B, C, G e F), mais comumente estreptococos do grupo A ou Streptococcus pyogenes. A segunda bactéria mais associada à celulite é o Staphylococcus aureus (leitura recomendada: Riscos da bactéria Staphylococcus aureus).
Tanto o Streptococcus pyogenes como o Staphylococcus aureus são bactérias que habitam naturalmente a nossa pele e pode aproveitar-se de qualquer ferida, escoriação ou perfuração, por menores que sejam, para invadir e causar uma infecção.
Alguns tipos específicos de celulite podem ter bactérias diferentes como agente causador, por exemplo:
- Celulites que surgem após mordidas de cachorros podem ser provocadas pelas bactérias Pasteurella multocida and Capnocytophaga canimorsus.
- Celulite bucal pode ser provocada pela bactéria Haemophilus influenzae tipo b.
- Feridas infectadas após exposição a águas, como lagos e rios, podem desenvolver celulite por Aeromonas hydrophila ou Vibrio vulnificus.
- Em recém-nascidos, a celulite pode ser provocada por estreptococos do grupo B.
- Os estreptococos do grupo B também podem ser os responsáveis por casos de celulite na região perineal e na parte inferior do tronco em mulheres no período pós-parto.
- A celulite periorbital pode ser provocada por Streptococcus anginosus ou Streptococcus pneumoniae.
- Celulite que surge após ferida provocada por mordida humana pode ser causada por Eikenella, Fusobacterium, Peptostreptococcus, Prevotella ou Porphyromonas spp.
- Paciente imunossuprimidos pode desenvolver celulite por uma imensa variedade de germes, incluindo fungos.
Sintomas da celulite
A celulite se manifesta como regiões de vermelhidão, inchaço e calor na pele, surgindo em resposta à penetração de bactérias por quebras na barreira cutânea.
Febre e outros sinais sistêmicos de infecção também podem se fazer presentes. Aumento dos linfonodos na região da virilha, do lado da perna acometida, também é comum.
A celulite geralmente afeta apenas um lado do corpo, e o local mais comum são as pernas. Se o paciente apresentar celulite em ambas as pernas ao mesmo tempo, outros diagnósticos devem ser considerados.
A celulite pode ser purulenta, levando a formação de abscessos nos tecidos mais profundos da pele. Em comparação com a erisipela, os pacientes com celulite tendem a ter uma evolução mais lenta.
Os pacientes com erisipela costumam apresentar um início abrupto dos sintomas com manifestações sistêmicas, incluindo febre, calafrios, mal-estar intenso e dor de cabeça. Estes sintomas podem inclusive preceder o aparecimento da inflamação na pele. Já na celulite, os pacientes tendem a ter uma evolução mais lenta, com o desenvolvimento da inflamação na pele ao longo de alguns dias, com a febre e o mal-estar vindo somente depois.
Se a região estiver muito inchada, o edema em torno dos folículos pilosos pode causar covinhas na pele, criando uma aparência que lembra a textura de uma casca de laranja.
Pode-se notar a presença de pequenas bolhas cheias de líquido (vesículas), grandes bolhas e manchas roxas (equimoses) ou múltiplos pequenos pontos vermelhos na pele (petéquias). Às vezes, pode ocorrer sangramento por baixo da pele se a inflamação estiver bastante intensa. A celulite crepitante, que causa uma sensação de estalido ao toque, e a celulite gangrenosa, que causa a morte dos tecidos infectados, são formas raras de celulite causadas por certos tipos de bactérias, como clostridium.
Existem outras variantes de celulite, como a celulite orbital, a celulite da parede abdominal (em pacientes com obesidade mórbida), a celulite bucal e a celulite perianal. Estas serão discutidas separadamente em artigos próprios.
Em casos raros, casos de celulite que envolvem o terço medial da face (ou seja, as áreas ao redor dos olhos e do nariz) podem ser complicadas por trombose cavernosa séptica. Esta é uma condição grave na qual um coágulo de sangue se forma em uma grande veia no cérebro. Isso pode acontecer porque as veias nesta área do rosto não têm válvulas, o que facilita a formação desses coágulos.
Diagnóstico
Na celulite clássica, nenhum exame laboratorial é necessário para o diagnóstico ou tratamento. O médico consegue fechar o diagnóstico apenas pelas características da lesão de pele.
Nas análises laboratoriais podem ser encontradas leucocitose (aumento dos leucócitos no sangue) e elevações da proteína C-reativa (PCR). As culturas sangue e de amostras de tecidos podem ser solicitadas nos casos mais graves e ou quando há formação de abscesso.
O mesmo ocorre com os exames de imagem, que só costumam ser utilizados quando há suspeita de infeção mais grave, com formação de abscesso ou envolvimento de camadas mais profundas.
Tratamento
A maioria dos casos de celulite pode ser tratada com antibióticos por via oral em ambiente ambulatorial.
Para os pacientes com celulite que não atendem aos critérios para antibióticos por via venosa, devem ser administrados antibióticos orais empíricos que sejam ativos contra Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus. O tratamento costuma durar de 7 a 14 dias, dependendo da velocidade de resposta da infecção.
Os antibióticos mais indicados para tratar os casos simples de celulite são:
- Dicloxacilina 500 mg a cada 6 horas.
- Flucloxacilina 500 a 1000 mg a cada 6 horas.
- Cefalexina 500 mg a cada 6 horas.
- Cefadroxil 500 mg a cada 12 horas ou 1 g uma vez ao dia.
Se o paciente tiver história epidemiológica que sugira infecção por outras bactérias além da Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus, como mordidas humanas, de animais ou contato da ferida com fontes de água naturais, o tratamento deve incluir antibióticos que também tenham cobertura contra os germes mais associados a essas situações.
A escolha entre antibióticos por via oral ou por via venosa deve ser feita consoante a gravidade do caso. Apenas com casos com menos gravidade devem ser tratados por via oral.
Algumas indicações para utilização de antibióticos por via intravenosa em ambiente hospitalar são:
- Envolvimento importante da mão.
- Celulite periorbital.
- Febre elevada, acima de 38ºC.
- Hipotensão arterial.
- Expansão rápida da área infectada, como, por exemplo, duplicação da área avermelhada em 24 horas (é comum os médicos marcarem a área infectada com uma caneta para avaliar se a lesão está se expandido rapidamente).
- Pacientes imunossuprimidos.
- Área da pele acometida muito extensa.
Além dos antibióticos, o repouso e a elevação do membro acometido são importantes pois ajudam a diminuir o edema e aliviam a dor. Compressas frias, analgésicos para aliviar o desconforto local e meias de compressão também ajudam.
Os pacientes normalmente apresentam melhora sintomática dentro de 24 a 48 horas após o início da terapia antimicrobiana.
Referências
- Erysipelas, the “Other” Cellulitis: A Practical Guide for Nurse Practitioners – Journal for Nurse Practitioners.
- Acute cellulitis and erysipelas in adults: Treatment – UpToDate.
- Cellulitis and skin abscess: Epidemiology, microbiology, clinical manifestations, and diagnosis – UpToDate.
- Cellulitis: All You Need to Know – National Center for Immunization and Respiratory Diseases, Division of Bacterial Diseases.
- Cellulitis – StatPearls – National Library of Medicine (NIH).
- Cellulitis – Medscape.
- Imagens: MD.Saúde e Deposiphotos.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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