Colesterol e eventos cardiovasculares
Já há muitos anos sabemos que existe uma relação direta entre os valores sanguíneos de colesterol, principalmente do colesterol LDL, e o risco de doenças cardiovasculares, tais como infarto agudo do miocárdio e AVC.
Também não é nenhuma novidade que nos pacientes com dislipidemia (colesterol alto), o tratamento com o grupo de fármacos chamados estatinas (ex: rosuvastatina, sinvastatina, pravastatina e atorvastatina) ajuda a reduzir a incidência de eventos cardiovasculares.
Até o momento, nenhuma outra classe de medicamentos mostrou ser eficaz na redução de mortalidade a um preço acessível a toda população, como as estatinas. Existem outros medicamentos muito eficazes, como os inibidores da PCSK9, mas esses fármacos são muito caros e ainda não estão amplamente disponíveis.
Até 2013, os médicos utilizam uma tabela de valores do colesterol LDL para decidir quando iniciar o tratamento. Se o paciente ultrapassasse determinado valor de LDL e não conseguisse reduzi-lo com dieta e mudanças de hábito de vida, o médico estava autorizado a iniciar uma estatina de forma a trazer o LDL de volta àquele valor predeterminado.
A partir de 2013, várias sociedades médicas de cardiologia adotaram novos consensos que alteravam a forma como a dislipidemia era tratada. Chegou-se a conclusão de que não havia estudos clínicos que apoiassem a utilização indiscriminada dos de valores alvos de LDL para decidir quem deveria tomar estatinas.
Em vez de mirar um valor absoluto de LDL, os médicos agora utilizam fórmulas que calculam de forma individualizada o risco de um evento cardiovascular nos próximos dez anos para decidir quem precisa tomar estatinas.
Isso significa que pacientes jovens e sem outros fatores de risco para doenças cardiovasculares, mesmo que tenham um LDL elevado, já não precisam tomar estatinas.
Por outro lado, pacientes com mais de 45 anos e com múltiplos fatores de risco cardiovascular, tais como hipertensão, diabetes, tabagismo e obesidade, podem precisar de estatinas, mesmo que o valor do LDL não seja muito elevado. O abjetivo atual não é mais tratar o valor do LDL, mas sim tratar pacientes com risco cardiovascular elevado.
Neste artigo explicaremos quais são as recomendações atuais sobre o tratamento da dislipidemia com estatinas e quais são as críticas de muitos cardiologistas e lipidologistas a essas recomendações.
Se você procura mais informações sobre o colesterol alto, não deixe de ler também os seguintes artigos sobre o assunto:
- Dieta para baixar o colesterol alto.
- Colesterol HDL, colesterol LDL e triglicerídeos.
- Estatinas – Remédios para baixar o colesterol.
- 10 medidas para aumentar o colesterol HDL.
- O que são os triglicerídeos?
Forma antiga de tratar o colesterol alto
A forma tradicional de tratar a dislipidemia dizia que quanto mais fatores de risco para doenças cardiovasculares o paciente tivesse, mais baixo deveria ser o valor do seu colesterol LDL. Grosso modo, podíamos resumir os alvos da seguinte forma:
- Paciente com até um fator de risco: colesterol LDL deveria ser menor que 160 mg/dL.
- Paciente com dois ou mais fatores de risco: colesterol LDL deveria ser menor que 130 mg/dL.
- Pacientes diabéticos ou com alto risco cardiovascular, principalmente aqueles já tiveram pelo menos um infarto ou AVC: colesterol LDL deveria ser menor que 100 mg/dL (alguns protocolos eram mais agressivos e indicavam LDL menor que 70 mg/dL).
Desta forma, todos os pacientes que não alcançassem os alvos estabelecidos com dietas e mudanças de hábitos de vida eram candidatos ao uso de um estatina. E o médico deveria a cada 6 meses solicitar dosagens sanguíneas do LDL para garantir que o paciente estava no valor pretendido. Se não estivesse, aumentava-se a dose da estatina.
Esse modelo caiu em desuso. Não é mais assim que decidimos quem precisa de medicamentos para baixar o colesterol nem o quanto de medicamento deve ser usado.
Forma atual de tratar o colesterol alto
Desde 2013, a forma como tratamos os pacientes com colesterol elevado mudou, pois uma grande quantidade de estudos acumulados nas últimas décadas nos mostrou que as estatinas eram efetivas em reduzir o risco de doenças cardiovasculares em 20 a 30%, independentemente dos valores prévios do LDL.
O que fazemos atualmente é: em vez de valorizarmos o valor do LDL isoladamente, tentamos identificar quais são os pacientes com maior risco de terem um evento cardiovascular nos próximos 10 anos e indicamos o uso de uma estatina para reduzir esse risco.
Portanto, já não buscamos mais alcançar um valor alvo de LDL como antigamente. O simples fato do paciente com múltiplos fatores de risco tomar uma estatina já é suficiente para reduzir a chance dele ter um evento cardiovascular, mesmo que o medicamento não consiga trazer o LDL para os valores que antigamente considerávamos adequado.
Para os pacientes com baixo risco cardiovascular, mesmo que eles tenham um colesterol LDL elevado, a prescrição de uma estatina oferece pouco benefício a curto-médio prazo (5 a 10 anos). Nesse grupo de baixo risco, o uso de estatina e a redução do colesterol LDL não têm efeitos relevantes na mortalidade. Por exemplo, se um paciente tem um risco de evento cardiovascular de 4% em 10 anos, uma redução de 30% nesse risco irá levá-lo para 3%, o que é uma variação pouco relevante.
As estatinas são mais efetivas para quem já teve um evento cardiovascular (por exemplo: infarto, insuficiência cardíaca ou AVC) ou para aqueles pacientes que apresentam grande chance de terem um, pois possuem múltiplos fatores de risco, tais como obesidade, diabetes, hipertensão, tabagismo, etc.
Explicaremos com mais detalhes como saber se um determinado paciente pode se beneficiar ou não do tratamento com uma estatina.
Como calcular o risco de evento cardiovascular nos próximos 10 anos
O primeiro passo na hora de avaliar se um paciente precisa ou não de uma estatina é avaliar qual é o seu risco de desenvolver um evento cardiovascular nos próximos 10 anos. A forma mais utilizada para avaliar esse risco é através do Escore de Risco de Framingham, uma fórmula já amplamente estudada, que utiliza informações tais como idade, valores da pressão arterial, valores do colesterol, hábito de fumar, etc., para estimar o risco cardiovascular nos próximos 10 anos.
Abaixo fornecemos uma das versões da Calculadora do escore de risco de Framingham.
É importante destacar que, ao longo dos últimos anos, novas versões do escore de risco de Framingham foram sendo desenvolvidas. As versões mais novas consideram mais fatores, tais como peso corporal e a existência de problemas de saúde, como diabetes, fibrilação atrial, claudicação (dor nas pernas ao andar por insuficiência arterial dos membros inferiores) e hipertrofia do ventrículo esquerdo.
Os pacientes que mais se beneficiam do tratamento com estatinas são aqueles que possuem um risco de evento cardiovascular maior que 10% nos próximos 10 anos. Se o risco for maior que 20%, o benefício é ainda maior. Os pacientes com menos de 10% de risco só se beneficiam em situações específicas, que serão explicadas a seguir.
Quem deve ser tratado com estatinas?
Segundo os consensos mais recentes, os pacientes que devem ser tratados com uma estatina são:
1. Pacientes com menos de 75 anos que já apresentam alguma doença cardiovascular estabelecida
Isso inclui pacientes que já tiveram pelo menos um episódio de infarto, ataque isquêmico transitório ou AVC. Também entram nesse grupo os pacientes com angina de peito, insuficiência arterial dos membros inferiores, insuficiência cardíaca, insuficiência renal crônica em estágio avançado (estadio III ou mais de DRC) ou pacientes com um risco maior que 20% no escore de risco de Framingham.
Esse grupo de pacientes deve ser tratado com doses altas de estatinas, independentemente do valor basal do seu LDL. Estatinas sugeridas neste caso são: Rosuvastatina 20 a 40 mg por dia ou Atorvastatina 40 a 80 mg por dia. O objetivo é reduzir o valor do LDL em pelo menos 50% ou para um LDL abaixo de 100 mg/dL.
Para os pacientes com doença cardiovascular estabelecida, porém com mais de 75 anos de idade, a decisão de começar estatinas em doses elevadas deve ser individualizada, consoante o estado clínico do paciente e sua expectativa de vida.
2. Pacientes com colesterol LDL maior que 190 mg/dL
Esses pacientes com LDL muito elevado apresentam elevado risco e muitos deles têm hipercolesterolemia familiar. Esse grupo deve ser tratado com altas doses de estatinas (Rosuvastatina 20 a 40 mg ou Atorvastatina 40 a 80 mg), independentemente do escore de Framingham, com o objetivo de reduzir o LDL em pelo menos 50%.
3. Pacientes entre 45 e 75 anos que apresentam um LDL acima de 100 mg/dL e são diabéticos ou têm um escore de risco de Framingham acima de 10%.
Pacientes que não têm doença cardiovascular estabelecida, mas se encaixam nos critérios acima, devem ser tratados com estatinas em dose moderada, como, por exemplo: Lovastatina 40 mg, Pravastatina 40 mg, Sinvastatina 40 mg, Atorvastatina 10 a 20 mg ou Rosuvastatina 5 a 10 mg.
Neste grupo de pacientes, não é preciso monitorar os valores de LDL. Não há um alvo específico a ser alcançado*, basta que o paciente tome o medicamento.
*Algumas sociedades de cardiologia preconizam uma redução de 30 a 50% no valor base de LDL.
Para os pacientes com menos de 45 ou mais de 75 anos, a decisão deve ser individualizada, conforme as características clínicas do paciente.
4. Pacientes entre 45 e 75 anos, com colesterol LDL abaixo de 190 mg/dL e escore de risco de Framingham entre 7,5 e 9,9%.
Nesse grupo de pacientes, o início de estatina é opcional e deve ser discutido entre o paciente e seu médico.
Críticas às atuais recomendações
Um grupo crescente de especialistas considera as atuais recomendações para o tratamento da dislipidemia como insuficientes por apenas considerar o risco em 10 anos e não levar em conta os valores da apoB nem da Lp(a) (explicamos esses marcadores no artigo: Colesterol alto: HDL, LDL, VLDL, ApoB, Lp(a) e triglicerídeos).
A lógica por trás dessas críticas é a seguinte: se nós já sabemos que a origem dos eventos cardiovasculares está na deposição de colesterol nas paredes das artérias ao longo de várias décadas, por que esperar a situação se tornar crítica, como risco maior que 10% nos próximos 10 anos, para só então agir?
Estudos mostram que, a partir de valores de LDL-C de 130 mg/dL, já há sinais de desenvolvimento de placas de ateroma nas artérias. Sabemos também que autópsias realizadas em pessoas jovens, ao redor dos 30 anos, que faleceram por acidente de trânsito, já apontam sinais iniciais de aterosclerose. Portanto, se sabemos que o LDL elevado é uma das principais causas das doenças cardiovasculares, por que não tratá-lo precocemente? Por que não prevenir a doença em vez de tratá-la apenas quando esta já está estabelecida?
O que tem sido proposto por um número grande de lipidologistas é o tratamento precoce de todas as pessoas a partir dos 20 anos com LDL-C acima de 130 mg/dl, apoB acima de 130 mg/dL ou Lp(a) acima de 30 mg/dL. O objetivo do tratamento não é reduzir o risco de infarto em 10 anos, mas sim impedir o acúmulo de placas de ateromas ao longo das décadas seguintes, fazendo com que o paciente chegue aos 50 anos de idade com suas artérias “limpas” e com risco cardiovascular muito baixo.
Sendo assim, se você tem LDL-C, apoB ou Lp(a) elevados, mesmo sendo jovem e sem fatores de risco para doenças cardiovasculares, procure um lipidologista para discutir com ele as opções de tratamento e prevenção mais apropriados para o seu caso.
Referências
- 2018 AHA/ACC/AACVPR/AAPA/ABC/ACPM/ADA/AGS/APhA/ASPC/NLA/PCNA Guideline on the Management of Blood Cholesterol – Journal of the american college of cardiology.
- 2016 Canadian Cardiovascular Society Guidelines for the Management of Dyslipidemia for the Prevention of Cardiovascular Disease in the Adult – Canadian Journal of Cardiology.
- Management of elevated low density lipoprotein-cholesterol (LDL-C) in primary prevention of cardiovascular disease – UpToDate.
- Atherosclerotic cardiovascular disease risk assessment for primary prevention in adults: Our approach – UpToDate.
- Cardiovascular disease risk assessment for primary prevention: Risk calculators – UpToDate.
- Predicting the 30-Year Risk of Cardiovascular Disease – Circulation.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.