O que é esteatose hepática?
A palavra “hepático” tem origem grega e significa fígado. “Esteato”, por sua vez, é o termo que indica relação com gordura. Portanto, esteatose hepática significa, literalmente, fígado gorduroso ou fígado gordo.
A esteatose hepática é a doença crônica do fígado mais comum no mundo, acometendo cerca de 25 a 35% da população. Entre os pacientes obesos, a prevalência chega a ser de 80% e entre os consumidores pesados de álcool a taxa beira os 100%.
Ter gordura no fígado é normal. Ter muita gordura é que é o problema. Até 5% do peso do fígado é composto por diversos tipos de gordura, incluindo triglicerídeos, ácidos graxos e colesterol. Quando o percentual excede os 5%, estamos diante de um fígado esteatótico, ou seja, um fígado com teor de gordura acima do desejável.
Até algumas décadas atrás acreditávamos que o acúmulo de gordura no fígado era causado apenas pelo consumo exagerado de bebidas alcoólicas e que a esteatose hepática era necessariamente algo danoso à saúde. Atualmente, sabemos que a esteatose hepática é muito comum e pode ser causada por diversas outras condições que não a ingestão crônica de álcool, conforme veremos mais adiante.
A esteatose hepática leve (esteatose hepática grau 1) habitualmente não provoca sintomas ou complicações. Nesses casos, o acúmulo de gordura é pequeno e não leva à inflamação do fígado.
O que é esteato-hepatite?
Ao contrário da esteatose leve, a esteatose hepática moderada a grave pode causar inflamação e lesão do fígado. Quanto maior e mais prolongado for o acúmulo de gordura, maiores serão os riscos de lesão hepática. Quando há gordura excessiva de forma crônica, as células do fígado podem inflamar e sofrer danos. Este quadro é chamado de esteato-hepatite ou hepatite gordurosa. A esteato-hepatite é um quadro bem mais preocupante que a esteatose hepática, já que cerca de 20% dos pacientes com essa condição evoluem para cirrose hepática.
Portanto, a esteatose hepática é um estágio anterior ao desenvolvimento da esteato-hepatite, que, como o próprio nome diz, nada mais é que uma hepatite causada por excesso de gordura. Cabe aqui salientar que nem todo paciente com esteatose hepática irá evoluir para esteato-hepatite. Na verdade, a maioria não o faz, mesmo nos casos mais graves.
A principal causa de esteato-hepatite é o consumo de bebidas alcoólicas. Em geral, dividimos os casos entre esteato-hepatite alcoólica e esteato-hepatite não alcoólica. A hepatite alcoólica e os malefícios do álcool já foram abordados em outros textos (leia: Malefícios do consumo de álcool e alcoolismo).
Resumindo: a esteatose hepática é uma doença geralmente benigna, mas que pode, em certos casos, evoluir para esteato-hepatite, uma forma de hepatite provocada pela deposição de gordura no fígado. A esteato-hepatite é uma forma de acumulação de gordura mais grave que esteatose hepática, pois pode levar, a longo prazo, à destruição do tecido hepático, à formação de cicatrizes no fígado e ao desenvolvimento de cirrose.
A ilustração abaixo mostra as diferenças entre um fígado com pouca gordura e um figado esteatótico. Reparem no tamanho e na coloração amarelada do fígado gorduroso.
Causas
Não se sabe exatamente por que alguns indivíduos desenvolvem esteatose hepática não alcoólica, mas algumas doenças estão claramente ligadas a esse fato. Podemos citar:
- Obesidade: mais de 80% dos pacientes com esteatose hepática são obesos. Quanto maior o sobrepeso, maior o risco.
- Diabetes Mellitus: assim como a obesidade, o diabetes tipo 2 e a resistência à insulina também estão intimamente relacionados ao acúmulo de gordura no fígado.
- Colesterol elevado: principalmente níveis altos de triglicerídeos.
- Medicamentos: vários fármacos podem favorecer a esteatose, entre as mais conhecidas estão: corticoides, estrogênio, amiodarona, antirretrovirais, Diltiazem e Tamoxifeno. O contato com alguns tipos de pesticidas também está relacionado ao desenvolvimento de esteatose hepática.
- Desnutrição ou rápida perda de grande quantidade de peso.
- Apneia obstrutiva do sono.
- Hipotiroidismo.
- Cirurgias abdominais, principalmente “bypass gástrico”, retirada de partes do intestino e até cirurgia para remoção da vesícula.
- Gravidez.
Não é preciso ter alguma das condições citadas acima para ter esteatose hepática. Pessoas magras, saudáveis e com baixa ingestão de álcool também podem tê-la, apesar deste fato ser menos comum.
A esteatose hepática é mais comum no sexo feminino, provavelmente por ação do estrogênio.
Consumo de álcool
O consumo frequente de bebidas alcoólicas é a principal causa de esteatose e esteato-hepatite. Estima-se que sejam necessários cerca de 40 gramas de álcool por dia (3-4 copos de cerveja ou 3-4 taças de vinho), por pelo menos 10 anos, para que o paciente esteja sob elevado risco de desenvolver esteato-hepatite alcoólica. Não sabemos, porém, qual é o valor mínimo de consumo de álcool que seja 100% seguro.
Sintomas
A esteatose hepática não causa sintomas. Normalmente, o diagnóstico é feito acidentalmente através de exames de imagem, como ultrassonografia ou tomografia computadorizada, solicitados por outros motivos.
Alguns pacientes com esteatose hepática queixa-se de fadiga e sensação de peso no quadrante superior direito do abdômen. Não há evidências, entretanto, que esses sintomas estejam relacionados ao acúmulo de gordura no fígado. Há pacientes com graus avançados de esteatose que não apresentam sintoma algum.
O aumento do tamanho do fígado, chamado de hepatomegalia, pode ser detectável através do exame físico nos pacientes com esteatose mais avançada ou esteato-hepatite. Nesses casos, a dor e o desconforto na região do fígado estão justificados.
O que diferencia o acúmulo de gordura benigno da esteatose hepática do acúmulo de gordura prejudicial da esteato hepatite é a presença de inflamação no fígado. Ambas situações não costumam causar sintomas. Clinicamente é impossível distingui-los.
Diagnóstico
Como já referido, o diagnóstico da esteatose hepática costuma ser feito através de um exame de imagem. Porém, nem sempre é possível diferenciar casos de esteatose, principalmente em fase avançada, da esteato-hepatite. A ultrassonografia, por exemplo, consegue-se ver bem a gordura, mas não possui sensibilidade suficiente para descartar ou confirmar a presença de inflamação no fígado.
Os exames de imagem também não conseguem distinguir a esteato-hepatite das outras causas de hepatite. Por isso, uma história clínica, exame físico e análises laboratoriais são imprescindíveis para a avaliação do paciente. Sorologias para hepatite A, B e C são necessárias para descartar a presença de hepatite viral.
As análises laboratoriais permitem avaliar o grau de lesão do fígado através das chamadas enzimas hepáticas (TGO e TGP ou AST e ALT) e de outros marcadores de doença do fígado, como a gama GT. Na esteatose hepática, as enzimas do fígado estão normais, enquanto na esteato-hepatite há aumento das mesmas.
Graus de esteatose hepática
Geralmente é possível quantificar a quantidade de gordura acumulada no fígado através da ultrassonografia. Os laudos costumam indicar esteatose hepática grau 1 (esteatose hepática leve) quando há pequeno acúmulo de gordura, esteatose hepática grau 2 quando há acúmulo moderado e esteatose hepática grau 3 quando há grande acúmulo de gordura no fígado.
Essa graduação não tem muito peso, uma vez que o mais importante é a presença ou não de inflamação no fígado. O paciente pode ter esteatose grau 3 e não apresentar inflamação hepática, mesmo após 20 anos de acúmulo de gordura, o que o coloca sob baixo risco de evolução para cirrose.
Biópsia hepática
O único modo de se diagnosticar uma esteato-hepatite com certeza é através da biópsia hepática. Este procedimento costuma ser indicado apenas nos pacientes com sinais clínicos, radiológicos e/ou laboratoriais de lesão do fígado. O paciente com uma esteatose leve não precisa se submeter à biópsia.
Portanto, se você tem imagem ao ultrassom sugestiva de esteatose hepática, mas não apresenta sintomas e não tem sinais de lesão hepática, é necessário apenas o acompanhamento anual para avaliar progressão da doença. Não há necessidade de repetir exames de imagem, pois estes não são bons para avaliar a progressão da esteatose.
Se houver sinais de esteato-hepatite, com sintomas ou alterações nos exames laboratoriais, deve-se pensar na hipótese da biópsia, e o paciente deve ser reavaliado a cada seis meses. Esses casos devem ser seguidos por um hepatologista.
História natural
Por ser uma doença silenciosa, que não provoca sintomas, o número exato de pessoas que sofrem acúmulo de gordura no fígado acaba ficando subestimado. Acredita-se que até 1 em cada 3 pessoas possa ter esteatose. A falta de um número exato dificulta estimar qual é o percentual destas que acaba evoluindo para cirrose a longo prazo.
Em geral, menos de 10% dos pacientes com esteatose acabam evoluindo para esteato-hepatite. Entre os pacientes com esteato-hepatite, 20% irão evoluir para cirrose.
Portanto, apesar de a esteatose ser uma doença benigna na grande maioria dos casos, se for não tratada, é possível que a doença evolua de forma desfavorável. Sendo assim, todo paciente diagnosticado com esteatose hepática e, principalmente, esteato-hepatite deve iniciar tratamento especializado para tentar reverter esse acúmulo de gordura.
Tratamento
Múltiplos tratamentos têm sido investigados para o controle da esteatose hepática. Porém, poucos apresentam resultados cientificamente comprovados. Resumiremos as principais medidas que podem ser tomadas para tratar a esteatose.
Perda de peso
A medida mais eficaz para controlar a esteatose hepática é a perda de peso. Estudos mostram que uma redução de apenas 7% no peso corporal pode ser capaz de trazer excelentes resultados. Portanto, uma pessoa obesa ou com sobrepeso, que pesa ao redor de 80 quilos, precisaria perder cerca de 5 quilos para conseguir apresentar regressão do acúmulo de gordura hepática.
Em geral, sugerimos a prática de atividade física e controle do consumo de calorias, de forma que o paciente perca entre 0,5 e 1 kg por semana. Perdas muito rápidas de peso, provocadas através de dietas muito rigorosas, podem ter efeito contrário, agravando a esteatose. Não é preciso ter pressa. Um emagrecimento lento, mas definitivo, é a melhor forma de combater a esteatose.
A perda de peso, obviamente, só funciona para aqueles indivíduos obesos ou com sobrepeso. Pessoas com índice da massa corporal (IMC) normal, ou seja, entre 20 e 25 kg/m², não apresentam grande benefício, pois a causa da sua esteatose não é o excesso de gordura corporal.
Pacientes obesos com esteato-hepatite que após 6 meses de dieta e exercícios não consigam emagrecer relevantemente são candidatos à cirurgia bariátrica.
Consumo de álcool
A suspensão do consumo de álcool é extremamente necessária para evitar que uma esteatose evolua para esteato-hepatite e cirrose hepática. Pessoas com sinais de acúmulo de gordura hepática devem evitar por completo as bebidas alcoólicas.
Provavelmente, pequenas quantidades de álcool, ingeridas esporadicamente, não devem fazer mal, porém, não sabemos a dose mínima segura nestes casos. Como boa parte dos pacientes com esteatose provocada por álcool estão habituados a ingerir grandes quantidades de bebidas alcoólicas, o ideal mesmo é educá-los a evitar a bebida por completo.
Doença cardiovascular
Pacientes com esteatose hepática apresentam maior risco de doenças cardiovasculares, por isso, o controle dos fatores de risco é essencial para diminuir o risco de complicações cardíacas. Perda de peso, pratica de atividade física, controle dos níveis da pressão arterial, parar de fumar e uso de estatinas (medicamentos para controlar o colesterol) são medidas que devem ser instituídas sempre que necessário.
O uso de medicação para controlar o colesterol não atua diretamente sobre a esteatose, mas ajuda a diminuir o risco cardiovascular destes pacientes. Se o paciente tem colesterol alto, a presença de esteatose é mais um motivo para o seu controle com medicamentos.
Vacinação contra hepatite A e B
Pacientes com esteatose e, principalmente, esteato-hepatite apresentam evolução mais desfavorável caso venham a se infectar com qualquer uma das formas de hepatite viral. Portanto, para aqueles que ainda não são imunizados, indicamos a vacinação contra a hepatite A e a hepatite B.
A vacinação não tem nenhum efeito sobre a esteatose, ela apenas serve de proteção contra adicionais problemas do fígado.
Ainda não existe vacina para hepatite C.
Suspender medicamentos nocivos
Se o paciente acumula gordura no fígado como efeito colateral de medicamentos, tais como corticoides, estrogênio, tamoxifeno, amiodarona, etc., o tratamento deve, sempre que possível, visar a suspensão desses fármacos.
Medicamentos
Infelizmente, as medidas que comprovadamente beneficiam o paciente com fígado gorduroso são apenas as descritas no tópico anterior. Dezenas de fármacos já foram estudados para o tratamento da esteatose, mas nenhum deles, até agora, conseguiu reunir substancial evidência científica para podermos afirmar sua eficácia e indicá-los especificamente para o tratamento.
Vamos resumir os resultados dos medicamentos mais estudados para a esteatose e esteato-hepatite.
Vitamina E
Os estudos com a vitamina E apresentam resultados conflitantes. Atualmente, há um consenso de que para esteatose simples, a vitamina E não apresenta nenhuma vantagem. Porém, pacientes com esteato-hepatite e sinais de fibrose hepática comprovados através da biópsia do fígado parecem se beneficiar do tratamento com 800 UI de vitamina E por dia.
Antidiabéticos orais
Fármacos hipoglicemiantes, usados habitualmente no tratamento do diabetes tipo 2, têm sido estudados como alternativa para o tratamento da esteatose. Entre os mais estudados, a Pioglitazona é aquela que apresenta melhores resultados nos estudos, com sensível melhora da esteatose e da inflamação nas biópsias hepáticas. Outra opção também com bons resultados são os agonistas dos receptores do GLP-1, como liraglutida ou semaglutida.
Esses medicamentos só devem ser usados nos pacientes com diabetes e esteatose. O seu uso não é recomendado nos pacientes sem diabetes.
O uso da metformina é mais controverso, havendo resultados conflitantes nos estudos científicos.
Orlistat
Estudos mostram que o efeito benéfico do orlistat está diretamente relacionado com a perda de peso do paciente. A droga não age diretamente sobre a esteatose. Logo, o orlistat pode ser usado no tratamento da esteatose apenas como droga auxiliar para o controle do peso corporal.
Agonistas do receptor de GLP-1
Os novos fármacos para o tratamento da obesidade e do diabetes, da classe dos agonistas dos receptores da GLP-1, como liraglutida, semaglutida ou tirzepatida, são boas opções para o paciente que é obeso ou diabético e apresenta esteatose hepática.
Ômega 3
Alguns trabalhos têm mostrado benefícios do ômega 3 nos casos de esteatose, mas não de esteato-hepatite. Pacientes com triglicerídeos elevados também parecem se beneficiar. Porém, estudos mais conclusivos ainda são necessários antes de podermos indicar o ômega 3 como tratamento efetivo para a esteatose hepática.
Medicamentos sem evidências científicas
Várias outras drogas foram testadas em diversos estudos, mas sempre com resultados inconclusivos. Entre elas, podemos citar:
- Losartana.
- Pentoxifilina.
- Betaína.
- Ácido ursodesoxicólico.
- Cafeína.
- Carnitina.
- N-acetilcisteína.
- Genfibrozila.
- Ácido fólico.
Dieta
Não há uma dieta específica para o paciente com esteatose. Porém, a alimentação do paciente esteatótico deve ser balanceada de forma a facilitar a perda de peso, o controle do diabetes e do colesterol. O indivíduo deve, portanto, evitar frituras, excesso de gorduras e doces.
Dietas ricas em gordura saturada, gordura trans e excesso de açúcar têm sido associadas a um maior risco de desenvolvimento de gordura no fígado. Bebidas e comidas ricas em frutose (refrigerantes e doces em geral) também são prejudiciais.
Frutas, cereais, legumes, verduras, gorduras poli-insaturadas são alimentos saudáveis que devem fazer parte da dieta de qualquer pessoa, mas, principalmente, de diabéticos, cardiopatas e indivíduos com esteatose.
Pacientes com dificuldade de reduzir o consumo de pão, devem dar preferência ao pão integral. Leite desnatado e queijos magros são os mais indicados. Entre as carnes, o peixe é a melhor, principalmente salmão, atum e sardinha.
Referências
- The diagnosis and management of nonalcoholic fatty liver disease: Practice guidance from the American Association for the Study of Liver Diseases – Hepatology.
- Long term prognosis of fatty liver: risk of chronic liver disease and death – British Medical Journal (BMJ).
- Nonalcoholic Fatty Liver Disease & NASH – The National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases.
- Recent advances in understanding and managing non-alcoholic fatty liver disease – F1000 faculty reviews.
- Epidemiology, clinical features, and diagnosis of nonalcoholic fatty liver disease in adults – UpToDate.
- Management of nonalcoholic fatty liver disease in adults – UpToDate.
- Fatty Liver – Medscape.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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