Doença de Berger (nefropatia por IgA): sintomas e tratamento

Dr. Pedro Pinheiro
Dr. Pedro Pinheiro

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Nefropatia por IgA

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O que é a nefropatia por IGA?

A nefropatia por IgA, também chamada de doença de Berger (se pronuncia “berjê”), nefropatia por imunoglobulina A ou glomerulonefrite por IgA, é uma doença renal de origem imunológica que pode levar à insuficiência renal terminal.

Como sempre fazemos aqui no MD. Saúde, proponho começarmos explicando o básico para que vocês possam entender do que se trata a doença de Berger. Ao longo da explicação indicaremos links para outros textos de modo que seja possível adquirir uma grande quantidade de conhecimento sobre o assunto.

Comecemos pelos conceitos:

  • Nefropatia significa doença dos rins.
  • Glomérulos são estruturas microscópicas do tecido renal responsáveis pela filtração do sangue.
  • Glomerulonefrite significa inflamação dos glomérulos (para uma melhor compreensão, sugiro fortemente a leitura de Glomerulonefrite: o que é, sintomas e tratamento).
  • IgA, ou imunoglobulina A, é um tipo de anticorpo produzido para defender as mucosas do trato respiratório e gastrointestinal contra germes do exterior.
  • NIgA: abreviação e nefropatia por IgA.

O que são as imunoglobulinas?

As imunoglobulinas, também conhecidas como anticorpos, são proteínas do sistema imunológico que desempenham um papel crucial na identificação e neutralização de agentes invasores, como vírus, fungos e bactérias.

Existem cinco classes principais de imunoglobulinas no corpo humano: IgA, IgD, IgE, IgG e IgM. Cada uma tem uma função específica, variando desde a proteção das mucosas até a ativação de outras partes do sistema imune. Elas são essenciais para a resposta imunológica, ajudando a manter o corpo protegido contra infecções e doenças.

Imunoglobulinas
Imunoglobulinas – Estrutura dos anticorpos

O que é a imunoglobulina A?

A IgA (Imunoglobulina A) é um tipo de anticorpo encontrado principalmente nas mucosas, como as do trato respiratório, digestivo e urinário, além de estar presente no sangue e em outros fluidos corporais.

A IgA desempenha um papel crucial na defesa imunológica do organismo, ajudando a proteger contra infecções por neutralizar patógenos e impedindo que eles invadam tecidos e órgãos. A imunoglobulina A é importante para a imunidade local, especialmente nas barreiras do corpo expostas ao ambiente externo, como a cavidade oral, por exemplo.

Como surge a nefropatia por IgA?

A teoria mais aceita atualmente sobre a origem da nefropatia por IgA é conhecida como a hipótese dos quatro golpes (four hit hypothesis). Vamos resumi-la.

Primeiro golpe

A nefropatia por IgA é uma doença renal que ocorre quando uma forma anormal do anticorpo IgA, denominada IgA1 probremente glicosilada ou IgA1 deficiente em galactose (Gd-IgA1), se acumula nos rins.

A IgA1 probremente glicosilada refere-se a um tipo específico de anticorpo IgA que tem cadeias de açúcar anormais ligadas a ele. Essa IgA defeituosa é produzida na mucosa do trato gastrointestinal ou respiratório e sua origem parece ter um componente genético forte. Até 25% dos parentes de primeiro grau de um paciente com nefropatia por IgA apresentam níveis elevados no sangue de IgA1 deficiente em galactose.

No entanto, apenas ter Gd-IgA1 não é suficiente para surgir a nefropatia por IgA. Outros golpes são necessários.

Segundo golpe

Essas imunoglobulinas IgA defeituosas podem ser reconhecidas pelo nosso sistema imunológico como algo potencialmente danoso. Quando isso ocorre, o corpo produz anticorpos, geralmente da classe IgG ou IgA, contra esses Gd-IgA1.

Ou seja, quando surgem IgA defeituosas, nosso sistema imunológico pode produzir autoanticorpos contra esses anticorpos defeituosos. Esse é o segundo golpe.

Terceiro golpe

Quando o autoanticorpo IgG ou IgA se liga ao Gd-IgA1 para tentar neutralizá-lo, cria-se o que chamamos de complexo imune.

Complexos imunes (autoanticorpos anti-Gd-IgA1)
Formação de complexos imunes na nefropatia por IgA (autoanticorpos anti-Gd-IgA1)

Como os anticorpos IgA defeituosos (Gd-IgA1) tendem a naturalmente se agregar, os complexos imunes formados por essas imunoglobulinas defeituosas também ficam todos juntos, quase que grudados, viajando pela circulação sanguínea. Esse é o terceiro golpe.

Quarto golpe

O último passo na formação da nefropatia por IgA é a deposição desses complexos imunes nos glomérulos, especificamente em no mesângio, que é a região que fica ao redor dos capilares do glomérulo. Os imunocomplexos viajam pelo sangue e quando chegam aos rins, são “capturados” pelo mesângio glomerular.

A deposição de imunoglobulinas no mesângio desencadeia uma intensa reação inflamatória que inicialmente provoca glomerulonefrite e, a longo prazo, leva à formação de fibrose e destruição dos glomérulos, vasos sanguíneos e do tecido renal em geral. Ao longo de anos doença, o paciente pode evoluir para insuficiência renal crônica.

Como é uma doença causada por um mau funcionamento do sistema imunológico, ela é pode ser considerada uma doença autoimune, apesar de não haver a produção de um anticorpo diretamente contra os rins.

Fatores de risco

Na imensa maioria dos casos, a nefropatia por IgA é uma glomerulopatia primária, ou seja, não ocorre devido a nenhuma outra doença. Não existe uma causa conhecida.

A doença de Berger é a glomerulopatia primária mais comum no mundo. Pode ocorrer em qualquer idade, mais o pico de incidência ocorre em pessoas entre 20 e 40 anos; é duas vezes mais comum em homens que em mulheres, e é uma doença de brancos e asiáticos, sendo rara em negros.

Apesar de ser uma glomerulonefrite primária na imensa maioria dos casos, eventualmente, a nefropatia por IgA por ser causada por outras doenças. As mais comuns são:

A distinção é simples: a nefropatia por IgA primária é aquela em que só há doença nos rins. O paciente nada mais tem. Já a nefropatia por IgA secundária é aquela que surge junto com outra doença, fazendo com que o paciente tenha, por exemplo, além da cirrose, também uma glomerulonefrite por depósitos de IgA.

Sintomas

A presentação clínica da nefropatia por IgA pode ser bem variável, podendo ser desde uma doença totalmente assintomática até um quadro bem agressivo, com sangramento urinário e perda rápida funcionamento dos rins.

Em pelo menos 50% dos casos, os pacientes apresentam quadros intermitentes de sangue na urina (hematúria), que ocorrem frequentemente após uma infecção das vias respiratórias, como faringites ou rinossinusites.

Esse quadro ocorre porque toda vez que o paciente tem uma infecção respiratória há um estímulo à produção de IgA, o anticorpo responsável pelas defesas das vias aéreas. Como a IgA destes pacientes é defeituosa, ela acaba se depositando indevidamente nos glomérulos, causando hematúria, um sinal de irritação nos rins. Quando a infecção se cura, os níveis de IgA caem, e os sintomas de nefrite costumam desaparecer temporariamente.

Em 40% dos casos, o paciente apresenta uma perda de sangue e de proteínas na urina, em pequenas quantidades, não sendo possível ser detectada ao olho nu. Este sangramento imperceptível na urina recebe o nome de hematúria microscópica. Normalmente, o paciente permanece anos com esta perda discreta de sangue, sem apresentar nenhum outro sintoma. O diagnóstico da hematúria microscópica ocorre geralmente por acaso em exames de urina solicitados por algum outro motivo.

Em 10% dos casos, a nefropatia por IgA se apresenta como uma nefrite mais grave, com grandes perdas de proteínas na urina, chamada de proteinúria, podendo causar síndrome nefrótica. Esses pacientes podem também apresentar elevações na sua creatinina sanguínea, que é um sinal de insuficiência renal. A hipertensão arterial é outro achado comum, que também sugere lesão renal mais grave.

As duas primeiras apresentações clínicas descritas acima, que envolvem quase 90% dos casos, são de uma doença crônica, com progressão ao longo de 15 a 20 anos. No caso de nefrite mais grave, como no último exemplo, a doença é mais aguda, podendo evoluir para insuficiência renal crônica avançada em menos de 5 anos.

Diagnóstico

O diagnóstico da doença de Berger deve ser sempre suspeitado em pacientes com hematúria, microscópica ou macroscópica, persistentes ou recorrentes, que se agravam após quadros de infecção respiratória.

O diagnóstico definitivo, porém, só pode ser feito através da biópsia renal, um procedimento no qual um pequeno pedaço do tecido renal é extraído para avaliação microscópica. Através da biópsia renal é possível identificar os anticorpos IgA depositados nos mesângios glomérulares e avaliar o grau de inflamação e destruição que eles estão provocando.

Prognóstico

O prognóstico da nefropatia por IgA é muito variável. Os casos mais leves podem até apresentar cura espontânea. Nos mais graves, o paciente acaba por desenvolver insuficiência renal crônica avançada, necessitando de hemodiálise.

Na maioria dos casos, a doença de NIgA costuma ser uma doença de progressão muito lenta. Em 20 anos, menos de 40% dos paciente vão precisar entrar em hemodiálise. Alguns dados podem predizer a evolução clínica.

São fatores de mau prognóstico para a nefropatia por IgA:

  • Apresentar creatinina elevada no momento do diagnóstico.
  • Apresentar progressiva elevação da creatinina ao longo do tempo, apesar dos tratamentos.
  • Apresentar proteinúria importante persistentemente, normalmente acima de 1,5 g por dia.
  • Pacientes com hipertensão têm maior risco de evoluírem para insuficiência renal crônica.
  • Apresentar na biópsia renal avançado grau de fibrose e atrofia das estruturas dos rins, como túbulos, vasos sanguíneos e glomérulos.

Ao contrário do que possa parecer, a simples presença de hematúria macroscópica recorrente (sem os fatores listados acima) não indica um pior prognóstico.

Tratamento

O tratamento da nefropatia por IgA varia consoante o prognóstico estimado.

1. Os casos mais benignos, com apenas uma discreta hematúria, sem hipertensão, sem proteinúria e sem elevação da creatinina, não precisam de tratamento e devem apenas ser seguidos com exames a cada 6 meses. Nestes casos, a maioria dos nefrologistas nem sequer pede a biópsia renal, já que dificilmente seu resultado servirá para alterar a conduta.

2. Nos pacientes que apresentam proteinúria acima de 500 mg por dia, ou hipertensão arterial, está indicado o tratamento com anti-hipertensivos da classe dos Inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) ou Antagonistas do receptor da angiotensina II (ARA-2). São medicamentos que controlam a pressão arterial, diminuem a perda de proteínas e protegem os rins.

Outros medicamentos atualmente indicados para os pacientes com IgA e proteinúria são os antidiabéticos da classe dos inibidores do co-transportador de sódio-glicose 2 (SGLT2), como dapaglifozina ou empaglifozina. Esses medicamentos podem ser utilizados mesmos nos pacientes que não tenham diabetes.

3. Nos casos mais graves, com proteinúria acima de 1000 mg por dia ou elevação da creatinina, o tratamento com drogas imunossupressoras está indicado. Os principais são os corticoides, normalmente prednisona ou prednisolona por 6 meses.

Se não houver melhora com os corticoides, outros fármacos imunossupressores podem ser utilizados, como micofenolato mofetil, ciclosporina ou ciclofosfamida.

A não resposta ao tratamento indica que o paciente provavelmente evoluirá com perda irreversível da função renal e eventual necessidade de hemodiálise.

Tarpeyo (budesonida)

Em dezembro de 2023 foi aprovado nos Estados Unidos um novo fármaco que promete melhorar muito a resposta ao tratamento da nefropatia por IgA.

O medicamento chama-se Tarpeyo e é baseado em uma formulação de budesonida, um corticosteroide já conhecido e usado em outras condições. No entanto, a formulação utilizada no Tarpeyo é desenhada para liberar o medicamento especificamente no íleo, a última parte do intestino delgado.

O objetivo dessa liberação direcionada é reduzir a inflamação na mucosa intestinal, que se acredita estar envolvida na produção anormal de IgA na NIgA. Reduzindo a produção de IgA anormal, espera-se que o Tarpeyo possa diminuir a formação de complexos imunes que causam inflamação e dano aos glomérulos renais.


Referências


Autor(es)

Dr. Pedro Pinheiro

Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.

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